Angela Alonso

Professora de sociologia da USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

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Angela Alonso

Heróis atuais passam de torturados a torturadores

Passado, presente e futuro se disputam todo dia

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Entre a crucificação de Cristo e o enforcamento de Tiradentes, a tortura virou assunto. O feriado católico, como o republicano, homenageia um torturado. Aliás, o segundo ícone foi criado à imagem e semelhança do primeiro. No início da República, mostrou José Murilo de Carvalho, a figura laicizada do messias serviu de modelo para o mártir republicano.

Então não havia moto, que dirá motociata, mas atrair acólitos pondo o pé na estrada já era voga. Silva Jardim, líder da ultraesquerda republicana, bolou périplo de propaganda contra o Império. Em vez de ir a Goiás, como Bolsonaro, foi a Minas, ao lugar do suplício de Tiradentes. A ideia era promovê-lo a herói republicano.

A ourivesaria da heroicização tem hoje outros eleitos. Os torturados foram substituídos pelos torturadores. Carlos Brilhante Ustra é enaltecido por movimentos de extrema direita desde, ao menos, a criação da Comissão da Verdade, em 2011. Presidente e vice já se referiram ao diretor do DOI-Codi, sede de sevícias, como "herói".

Área de memorial em São Paulo sobre a ditadura - Bruno Santos - 15 jun.20/Folhapress

Nesta semana, Newton Cruz adensou o panteão. Houve apologia, continências, glorificação do "combate ao comunismo" e à "extrema imprensa" e viralização de vídeo em que o general ataca um jornalista. Isso no mundo virtual.

Já a coroa de flores presidencial foi bem tangível. Veio com a faixa "tributo à democracia. Presidente Jair Bolsonaro", transmutando figura-chave da ditadura em paladino democrata. O filho Eduardo adendou: "Morreu o General Newton Cruz, um GRANDE HERÓI da resistência brasileira contra o comunismo em favor da liberdade." Sua caixa alta virou mantra nas hostes bolsonaristas.

A tática disputa o sentido do regime militar. Em vez de ditadura, estabelecida por pesquisas científicas, "revolução". O relatório da Comissão da Verdade documentou prisões arbitrárias, tortura de todos os tipos, assassinatos e desaparecimentos de opositores políticos. No entanto, em vez de violência do estado, descomunal em relação à força dos dissidentes, fala-se de luta de igual para igual entre soldados da liberdade e terroristas comunistas.

A equivalência é uma fantasia, mas prospera como fogo em pólvora pela internet, em círculos vedados a juízo divergente.

Fantasia confirmada por autoridades da República, quando da revelação, pelo historiador Carlos Fico, de áudios atestando a tortura institucionalizada na ditadura.

Diante de fatos incontornáveis, o vice-presidente repisou a equivalência: "Houve excessos de parte a parte." E riu-se: "Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô." O presidente do Supremo Tribunal Militar, apesar de desarmado de gramática, engatilhou ironia: "Não temos resposta nenhuma a dar." "Garanto que não estragou a Páscoa de ninguém. A minha não estragou." Tortura não merece apuração, para um general, nem atrapalha o feriado cristão do outro.

E é legitimada na batalha imaginária do bolsonarismo contra a eterna "ameaça comunista", na qual torturadores aparecem como heróis, verdadeiros patriotas.

Mas a pátria se disputa, como já sabia Silva Jardim e bem o sabe Anitta. A cantora, além de dar show de estratégia digital, entrou na competição pelos símbolos nacionais. Cantou vestida de verde e amarelo. As cores nacionais, falou, "pertencem a todos os brasileiros". Não são propriedade da extrema direita.

E a história nacional, a quem pertence? Mourão disse que a tortura é "história, isso já passou." Não passou, está aí na berlinda. O passado, como o presente e o futuro, se disputa todo dia.

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