Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

A falsa dicotomia Baco x Bacon

A gente precisa resgatar da extrema direita o churrasco com pagode

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Para tirar os homicidas de Brasília precisamos organizar uma frente ampla que garanta os votos da esquerda sem, com isso, espantar os votos da direita. A esquerda tem, portanto, que rever algumas posições e repensar suas estratégias. Isso, claro, caso os que se dizem progressistas queiram de fato tirar o Bolsonaro, não perder a eleição posando feito sílfides esculpidas na pureza e banhadas na razão.

A esquerda é gigante e plural, claro. Longe de mim querer falar pelo sem-terra do Acre, pela feminista da Bahia, pelos movimentos negros Brasil afora. Eu me considero, na verdade, só meio de esquerda (ou seja, luto por um mundo menos desigual, mas, se possível, sem ter que ver o Zé Celso pelado). Sou parte de um grupo que, embora pequeno, tem voz. Paulistano, classe média alta, escola particular, faculdade de humanas, coluna na Folha, roteiros pra Globo. Quando os bolsominions delirantes mencionam “essa mídia e esses artistas comunistas-maconhistas-gayzistas” é basicamente da minha bolha que estão falando. E o fato de serem absurdas a maioria das acusações não significa que não pisemos na bola. Pelo contrário.

Ilustração de uma fatia de bacon com uma bandeira vermelha fincada nela
Adams Carvalho/Folhapress

Gostaria de começar minha autocrítica assumindo que nós, da esquerda (e da meia esquerda), das artes e da mídia, fomos muito injustos ao julgarmos uma novidade arquitetônica surgida ali pela virada do século 20 pro 21, a varanda gourmet. Acredito que se tivéssemos nos atentado ao descolamento da nossa visão de mundo dos anseios estéticos (e gastronômicos) de boa parte da classe média, não estaríamos agora neste mato sem cachorro onde a vaca foi pro brejo e a onça bebeu água suja de mercúrio e morreu intoxicada.

Falo sério. Se a pergunta “Mora ou gostaria de morar num apartamento com varanda gourmet” constasse nas pesquisas qualitativas, veríamos claramente a cisão antropológica: quem curte assar uma picanha nas alturas não curte assistir às Bacantes no Oficina –e vice-versa, no que poderíamos batizar de “A dicotomia Baco X Bacon”.

Para nós, a varanda com churrasqueira representa aquilo que, em algum filme nacional dos anos 1970 (de esquerda), seria dito da seguinte forma: “essa tua porra de visão de mundo pequeno-burguesa de merda, Carlinha!”.

É compreensível. São Paulo é uma cidade que não cresce segundo o bom senso urbanístico, mas ao sabor de construtoras que ditam quais bairros de casas serão postos abaixo para subirem prédios. Nesse sentido, os novos edifícios com varanda gourmet são um retrato do nosso caos metropolitano. Mas o cara que comprou ou alugou um apartamento e tá felizão fazendo uma fraldinha terça à noite (o que, ao meu ver, é um programa bem legal) não é dono da empreiteira.

A bronca desta esquerda (da qual faço parte) com a varanda gourmet me parece nascer do mesmo lugar que o preconceito com o axé, o pagode, o funk, a televisão, as comédias que levam milhões aos cinemas: o proletariado não está fazendo a revolução, cantando Mercedes Sosa, está comendo pão de alho e dançando o passinho.

Se a gente quiser tirar o Bolsonaro, não tem que falar com quem curte Zé Celso, mas com quem curte Marília Mendonça. A gente tem que sair dessa missa em latim (pra convertidos) que se tornou a fala da esquerda, essa religião cheia de tabus e proibições, sem gozo ou ar puro, e precisa resgatar da extrema direita o churrasco com pagode. Seja na laje ou na varanda gourmet. Até porque nada é mais Baco do que isso, e Baco, evidentemente, jamais votaria 17.

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