Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Antonio Prata
Descrição de chapéu alimentação

Mal passado

Dentre as mil formas de se oprimir pelo gosto, uma das que me dão mais raiva é o ponto da carne

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Quanto mais sutil a opressão, mais cruel. Por isso, dentre as mil formas de subjugar os outros, tenho uma implicância especial com o bom gosto. Apontar o que há de brega, cafona, fora de moda ou exagerado nas pessoas é uma vaidade disfarçada de virtude. Lobo em pele (sintética, claro, segundo os ditames do nosso tempo) de cordeiro. Julgar esteticamente é uma das poucas situações em que a gente pode dizer "eu sou melhor do que ele" e sair bonito na foto.

Se amanhã eu aparecer numa Ferrari, todo mundo vai olhar pra mim e dizer: ostentação. Já se eu puser na minha casa uma poltrona Barcelona, o pessoal vai comentar, "nossa, que chique". E vejam só: enquanto uma Ferrari é o melhor carro já produzido pela humanidade, a poltrona Barcelona é das piores maneiras de se sentar. Ela não serve para descansar a bunda, mas para descansar a mente. Você bota o design do Mies van der Rohe em casa e fica sossegado, pensando, "nossa, sou fino". (De preferência, sentado no sofá molinho comprado na Magalu).

A ilustração de Adams Carvalho mostra o desenho de uma poltrona frente a uma pequena churrasqueira.
Adams Carvalho

Pois: dentre as mil formas de se oprimir pelo gosto, uma das que me dão mais raiva é o ponto da carne. Repare com que orgulho o cidadão declara ao garçom , num restaurante, "mal passado". Fala alto, para que os outros ouçam, como se a pergunta fosse "Onde você se formou?" e a resposta, "Harvard".

Já o pobre diabo que quer seu bife bem passado é quase um proscrito. Eu sou churrasqueiro. Vejo uma amiga ou amigo se aproximar da grelha e pelo jeito que se arrasta, com o rabo entre as pernas, quase ganindo, sei o que vai pedir. Ela(e) chega bem perto. Inclina o corpo. Com a cautela envergonhada de alguém que perguntaria "Você vende maconha?", sussurra no meu ouvido: "Será que rola sair uma um pouquinho mais bem passada?".

Venho de uma família dogmática. Minha avó tem uma pousada e no cardápio está escrito, em letras maiores do que a dos pratos: "Não servimos bife bem passado". "No meu restaurante eu não sirvo comida ruim!", ela diz. Eu respeito sua posição. Contudo, rompendo com os valores familiares, ajo diferente. Não ao ponto (parara tum tsssss! —isso foi caixa, bumbo e prato) de preferir carne bem passada, mas pelo menos ao ponto (tum tsss, tum tsss! —bumbo e prato 2 x) de grelhá-la mais pra quem quiser. Acredito que o churrasqueiro é um funcionário público e está a serviço dos comensais, não o contrário.

Bife cortado em três grandes pedaços um sobre o outro e espetados por um garfo
Bife em restaurante da zona oeste de São Paulo - Luis Alejandro Delgado/Divulgação

O mal passado goza de tal prestígio que até carnes que deveriam ser servidas mais cozidas acabam chegando cruas à mesa. É o caso do hambúrguer. Hambúrguer cru não é saboroso. Ele pode estar rosado no meio, mas não vermelho e sangrando como uma picanha. Pode, também, ser bem passado, como os "smashes" que estão na moda. Mas vai numa dessas lanchonetes hipsters e pede pro barbudo tatuado o hambúrguer bem passado: ele te encara com ódio e desprezo semelhantes ao do motorista avistando seu Mastercard logo após se tornar obrigatório táxi aceitar cartão de crédito.

"Ah, Antonio, mas e o ketchup na pizza?". (Não sei por que pus entre aspas, sou eu perguntando pra mim mesmo). "E o cream cheese no sushi?". "E o macarrão no bufê do rodízio?". Aceitemo-los —assim como vós aceitais essa mesóclise. São todos filhos da Revolução Francesa, frutos da democracia. O preço da liberdade não é só a eterna vigilância. Entram também na conta o Crocs, a estampa de oncinha e o bife esturricado.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.