Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Descrição de chapéu Viver

Uma guinada de 360º

A quarentena acabou e voltamos pro mesmo lugar de onde partimos

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A pandemia foi um divisor de águas –se considerarmos a água como uma substância que, uma vez dividida, seja com as mãos, com o leme de um petroleiro ou mesmo com a mais afiada das espadas samurai, se reúne imediatamente. (Moisés não conta, Deus adora brincar com águas).

Lembro, durante a quarentena, de artigos no jornal, discussões on-line e lives de grandes pensadores afirmando que haveria "um antes e um depois da pandemia". O mundo jamais seria o mesmo. Iríamos rever nossa forma de produzir, socializar, educar, amar.

Picas. Mudamos como o cara que tem um enfarto, toma um susto, para de fumar, se matricula na academia, enche a geladeira de Heineken Zero –e um ano depois já tá apagando a bituca do Marlborão no último salaminho da cumbuca.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 31 de Março de 2024, mostra o desenho de uma pessoa tapando os olhos com uma máscara cirúrgica
Adams Carvalho

Se as duas grandes guerras não nos transformaram em pacifistas, por que um vírus em forma de mamona nos ensinaria "a dar valor ao que realmente importa"? A quarentena acabou e voltamos pro mesmo lugar de onde partimos: correria demais, sentido de menos, a Terra esquentando, o tio Walter causando no zap da família, a CBF aquela vergonha e a dieta eu começo na segunda-feira.

Às vezes, no meio do dia, regando as plantas, me vem a vaga lembrança daqueles tempos estranhos. Vaga, sim: parece algo de outra década, como a minha festa de formatura ou o 7 x 1 da Alemanha. (Acho, inclusive, que recordo com mais emoção do 7 x 1 do que do isolamento).

Talvez seja negação. Talvez eu tenha bloqueado os meses infinitos de angústia, álcool 70%, pré-primário on-line e máscara cirúrgica. Se for negação, é coletiva. São raros os momentos em que, num jantar com amigos, numa roda de festa, num debate na televisão, reexaminamos aqueles anos. É como se tivessem ficado separados de nós por uma placa de acrílico ou três camadas de tecido –com selo do INMETRO.

Quantos são os filmes, as séries, os livros, as peças que retratam aquela época? Durante a quarentena, sim, produzimos muita coisa, a toque de caixa, tentando dar conta do absurdo da situação, mas uma vez vacinados e de volta à rua, a arte retornou aos temas de sempre.

A memória dos dias em que a Terra parou voltou hoje, no carro. Meu filho me viu acomodar uma sacola no banco do carona e disse "lembra, papai, quando a gente foi pra São Francisco Xavier na quarentena e você teve que botar o cinto na bicicleta?". A frase insólita me levou direto à insólita situação. Abril de 2020, começo do isolamento, alugamos uma casa num sítio, por um mês. (Diziam que a quarentena duraria umas duas semanas, os mais pessimistas chutavam dois meses). Na primeira noite no campo, pus as crianças pra dormir e fui ouvir um podcast. Um médico explicou, com muita segurança, que a quarentena duraria dois anos. Escrevi imediatamente pra dona do sítio e propus alugá-lo por mais onze meses.

Uma semana mais tarde fomos pra São Paulo fazer a "mudança". Enchi cada centímetro quadrado do carro. Com uns bons 30 quilos de tralhas mais uma bicicleta infantil no banco do carona, o alarme do cinto começou a apitar, como se houvesse ali uma pessoa desprotegida. Só depois de afivelar o cinto em torno da bicicleta conseguimos pegar estrada.

Passei os últimos dias com a imagem na cabeça: caixas de água de coco, um filtro de barro, roupas de inverno e verão, livros, apostilas escolares, uma caixa de War, boias espaguete, inúmeros sacos verdes e cinza de supermercado, tudo esmagado por uma bicicleta infantil e abraçado pelo cinto de segurança. É uma imagem estranha, embora eu não saiba exatamente o porquê. Talvez devêssemos, sei lá, de vez em quando, quem sabe, conversar sobre a quarentena.

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