Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Duzentas mil Rebecas

Quando nossos pais nos batizam, eles nos dão um amuleto, cada um deles com poderes mágicos

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"Os sobrenomes são prosa, os nomes são poesia." Trombei com essa definição no livro "Literatura Infantil", do grande escritor chileno Alejandro Zambra. Prosa é quando a gente usa as ferramentas da língua. Poesia é quando a gente constrói as próprias ferramentas.

Eu nasci Prata, filho de um Prata, neto de um Prata. Jheniffer, jogadora da seleção brasileira de futebol, e Daiane, ex-ginasta, nasceram da Silva e dos Santos, filhas e netas de Silvas e Santos. Não tem invenção nem originalidade nestes três casos, só a modorrenta continuidade. Mas quando nossos pais nos batizaram de "Antonio", "Jheniffer" ou "Daiane" eles estavam nos dando um amuleto, cada um deles com poderes mágicos específicos.

Ilustração mostrando os movimentos de Rebeca Andrade.
Adams Carvalho

"Antonio" era uma afirmação da brasilidade, típica dos pais de esquerda dos anos 70. "Jheniffer" e "Daiane" também são, por um caminho inverso, noutra década, suco de Brasil, como se diz por aí. É a língua falada dando as cartas sobre a escrita. (Como, aliás, sempre foi, é e será, apesar dos plúmbeos burocratas da gramática). É o novo mundo se afirmando, com saudável petulância adolescente, sobre o velho. Em algum lugar Oswald de Andrade sorri. O escritor, aliás, também foi batizado com nome inglês, mas num ato antropofágico pedia para ser chamado com um acento agudo no "a", virando "Oswáld".

Em Portugal existe uma lista oficial de nomes que você pode dar a uma criança. Tenta registrar uma "Rayssa" ou um "Alisson" em Lisboa e um barnabé vai te barrar. A não ser que você encontre, nos arquivos da Torre do Tombo ou em algum alfarrábio, um português homônimo.

Meu amigo, irmão e parceiro de trabalho, Chico Mattoso, foi batizando na mesma onda deste Antonio aqui. Quando nasceu, seus pais estavam exilados em Paris e não sabiam se um dia poderiam voltar. (Dá uma certa esperança lembrar que o mundo já esteve perdido antes, né?). Pois, os expatriados patriotas ficaram entre o brasileiríssimo Francisco e um nome popular e rural francês, Yannick. Num ato de otimismo, fecharam em Francisco.

Gosto de imaginar, numa realidade paralela, este Yannick. Ao contrário do meu amigo Chico, corintiano, fã de Aldir Blanc, casado com a cearense Isabelle, ele seria um patrício contrariado, orgulhoso de sua origem francesa, talvez um alfaiate que, lá por 2008, teria resmungado muito, com um sotaque a la Troisgros, "esse aerroporrrrto tá parrrrecendo uma rodoviárrria".

No prefácio do xará Antonio Candido pra "Raízes do Brasil", obra do pai de outro Chico, o professor se refere a uma geração como todos aqueles que "julgam-se a princípio diferentes uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos para se dissolverem nas características gerais da sua época".

Para comprovar a afirmação, nada melhor que dar um Google "IBGE+nomes". No site, você vê quantos xarás você tem, e, num gráfico, qual a prevalência do seu nome, ano a ano, desde 1900 até 2010. (Infelizmente o IBGE não atualizou a lista). Naquele ano havia, no Brasil, 2.576.348 milhões de Antonios. O nosso auge foi bem quando nasci. Franciscos eram 1.772.197. As Daianes eram 244.869. Imagino que depois da Daiane dos Santos sejam muito mais. As Jheniffers eram 4.141, com pico em 2000.

Volto daqui a dez anos pra contar quantas Rebecas teremos. Serão dezenas, talvez centenas de milhares. É a poesia, com entrada de rodante, uma meia volta na primeira fase do voo e uma pirueta e meia na segunda fase, se fazendo estatística.

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