Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Frida numa janela indiscreta

Se poesia é esconde-esconde, crônica é pega-pega

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Em "Procura da poesia" o Drummond diz que os poemas se escondem "no reino das palavras", "que esperam ser escritos", "em estado de dicionário". Sou incapaz de escrever um poema. Se tivesse que escolher entre ganhar a vida como poeta ou halterofilista, agarraria os halteres. Melhor derrubar chumbo no chão do que lançar um monte de bobagem no mundo. (Até porque seria bem pouco chumbo que eu conseguiria derrubar).

Tava lendo o poema e pensando nas crônicas. Elas não se escondem "no reino das palavras". Pelo contrário. Elas se revelam por todo canto. Se poesia é —caso eu tenha compreendido Drummond— esconde-esconde, crônica é pega-pega. Basta olhar em volta, tem dúzias de temas correndo por aí, saltitando na nossa frente, é só agarrar o mais próximo, puxar pelo colarinho e pedir, com carinho: o que você tem a me dizer?

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 21 de Abril de 2024, mostra o desenho de uma pessoa levemente arqueada fotografando uma pequena nuvem à sua frente.
Adams Carvalho

De tempos em tempos, em cursos ou entrevistas, me perguntam "de onde vêm as ideias?". Geralmente se espera uma resposta algo mística. Acho que isso vem menos da curiosidade dos leitores do que de um defeito dos escritores. Defeito, não. Falemos a verdade: de uma malandragem. Talvez por sermos profissionais mal pagos, pouco valorizados num país iletrado, quando nos dão um microfone nas mãos, queremos pagar de abençoados. "São as musas!" "É um transe." "Eu não escrevo, eu telegrafo o que uma voz oculta me dita." Um grande escritor brasileiro disse que escrever era fácil, bastava botar uma folha em branco na máquina (era o século 20) e ficar diante dela até os olhos começarem a sangrar. Os olhos. Começarem. A sangrar. Gente. Menos. Né?

Eu tive a sorte de ser filho de um escritor muito irreverente. "Irreverente" é uma palavra que costuma ser usada de forma boba. Tipo o tio que faz a piada do "é pavê ou pacomê?". Uso em outro sentido. De não ter reverência à palavra escrita. Usar a língua de bermuda e chinelos, não de fraque e cartola —como, num país subdesenvolvido, muitas vezes os escritores se apresentam.

Cresci lendo meu pai escrevendo como falava. Claro que existem outras abordagens. Guimarães Rosa não falava daquele jeito. Mas tentou escrever do jeito que outras pessoas falavam. Ou tentou, como todos os grandes escritores, usar as palavras pra retratar a vida da maneira mais precisa que conseguiu. O gênio Graciliano Ramos (que se escrevesse em inglês ou russo seria considerado um Tchekhov) disse que "a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer".

Existem as coisas. Depois os nomes das coisas. E devemos achar os nomes delas e chamá-las de acordo. O Millôr Fernandes (que se escrevesse em inglês seria um Mark Twain) dizia que se você escreve "coisa" é porque não pensou bem sobre o assunto. Escrever "coisa" é como usar uma faca pra tirar um parafuso. Que "coisa" é a "coisa" de que você tá falando? É um objeto? Qual? É um sentimento? Qual? "Coisa" é coringa. Façamos canastras reais.

Tenho um parceiro de trabalho (e de vida) há 20anos, o Chico Mattoso. Por umas seis horas por dia, todo dia, ficamos no Zoom. Durante alguns minutos ele sai pra ir ao banheiro ou beber água. Na estante atrás dele há duas fotos. Uma do Truffaut com o Hitchcock, das entrevistas que eles fizeram. E outra foto, nada a ver com eles, da Frida Kahlo. Mas do jeito que as fotos estão na estante, parece que a Frida tá olhando pro Truffaut e o Hitchcock tá olhando pra Frida. Deus do céu: que papo é esse que tá rolando nessa estante? O que a Frida quer falar pro Truffaut e o que o Hitchcock quer falar pra Frida? Seria uma ótima forma de começar uma crônica.

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