Atila Iamarino

Doutor em ciências pela USP, fez pesquisa na Universidade de Yale. É divulgador científico no YouTube em seu canal pessoal e no Nerdologia

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Atila Iamarino

Não aprendemos com a pandemia

Mentir para 50 milhões de brasileiros por 4 anos parece bem factível

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O que leva alguém a acreditar em mentiras? Falta conhecer a verdade? Ou estar enganado tem seu valor?

Muito da divulgação científica se baseia no déficit de informação: as pessoas não sabem como o universo funciona e se isso for bem explicado vão aceitar. Segundo esse modelo, o papel dos experts seria traduzir a informação para quem carece dela. Um modelo simples que foi assumido no relatório "The public understanding of science", algo como "O entendimento público da ciência".

Escrito por Walter Bodmer, foi um relatório pró-popularização de ciência que em 1986 recomendou aos ingleses produzir conteúdo em mídias e abrir espaços como museus para melhorar o entendimento público de ciência.

O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, de máscara, olha para a câmera
O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que não sabia o que era o SUS, recebeu mais de 200 mil votos para deputado federal no Rio de Janeiro - Edilson Rodrigues - 20.mai.21/Agência Senado

Quando o assunto é algo sobre o que as pessoas têm pouco ou nenhum apego emocional, esse déficit pode até ser o caso. Explicar que objetos metálicos não vão no forno micro-ondas pode ser produtivo. Mas quando se trata de um assunto emocional ou identitário, como a evolução humana ou mesmo a catástrofe climática que causamos, simplesmente prover o consenso científico não chega perto de mudar o que muitos pensam.

Somos animais sociais imersos em cultura, onde pode ser muito mais importante acreditar e repetir ideias que o seu grupo promove do que se isolar aceitando a realidade. Muitos estão mais do que dispostos a aceitar mentiras convenientes. Mentiras claramente falsas, mas que servem para quem quer acreditar tapar o buraco que os fatos abrem.

Se falta um novo relatório concluindo que o modelo de déficit de informação é falho, basta perguntarem o que os checadores de fatos pensam sobre o primeiro turno das eleições. A mentira pode ter perna curta, mas tem quem a carregue para muito longe, mesmo quando o preço é alto. A desigualdade e a pobreza aumentaram o estrago da Covid, mas um padrão notável segue uma trajetória diferente.

Durante a segunda onda, em 2021, quando a adoção das medidas de combate já estava sob a responsabilidade de estados e municípios, as cidades que concentraram mais votos no atual presidente em 2018 tiveram proporcionalmente mais mortes.

Moradores de municípios pequenos e médios mais ricos do que a média nacional e com mais votos de direita em 2018, como no interior paulista, tiveram mais chances de morrer de Covid do que moradores de municípios do mesmo tamanho com renda e infraestrutura de saúde menor, mas que seguiram menos as recomendações do presidente. São pessoas que morreram sem vacina, tomando cloroquina e acreditando que a Covid seria só uma gripe e que não precisavam se isolar em casa. Pagaram com a vida por essas mentiras.

E agora, em 2022, depois de mais estrago econômico, social e moral, muitos desses municípios repetiram o mesmo padrão de voto. O ex-ministro da Saúde, que não sabia o que era o SUS, que promoveu tratamento precoce e viu 270 mil mortes acontecerem enquanto obedecia ordens de um governo negacionista que atrasava as vacinas, recebeu mais de 200 mil votos no Rio de Janeiro. O ex-ministro do Meio Ambiente, investigado por tráfico de madeira da Amazônia, recebeu mais de 600 mil votos em São Paulo. Entre outros.

Mentiras, como a de que o governo federal não poderia agir ou que o tratamento precoce poderia evitar a falta de oxigênio em Manaus, ainda são um escudo contra a responsabilidade pela calamidade evitável. Para o desespero de cientistas, jornalistas e quem mais quer viver em um mundo baseado na realidade, pode ser difícil mentir para todos o tempo todo, mas mentir para 50 milhões de brasileiros por quatro anos parece bem factível.

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