Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Barbárie em Brasília não é obra só de bolsonaristas radicais

Tentativa de se desvincular de responsabilidades une eleitores não envolvidos no ataque e criminosos

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Nos dias seguintes à invasão da praça dos Três Poderes pela turba bolsonarista, 93% dos brasileiros se diziam contrários aos atos de vandalismo, segundo pesquisa do Datafolha, mas apenas 55% atribuíam alguma responsabilidade ao ex-presidente, um pouco mais dos que não votaram nele.

Desde a invasão, governo, autoridades e jornalistas tentaram associá-la a uma minoria criminosa, ignorante e insana. O momento é de emergência, de reunir forças para tentar governar ("pacificar") um país onde quase metade dos eleitores votou em Bolsonaro mesmo depois de quatro anos de um governo cuja racionalidade não diferia em essência da turba que invadiu e depredou as sedes dos Três Poderes.

Apoiadores em frente à casa onde Bolsonaro está hospedado, em Kissimmee, na Flórida - Chandan Khanna - 12.jan.23/AFP

Que racionalidade é essa?

O ex-presidente tem histórico de incendiário. Como militar, planejou plantar bombas para aumentar seu salário. Como deputado, fez a apologia da tortura no Parlamento. Como presidente, tomou todas as medidas a seu alcance para incendiar o patrimônio público, extinguindo multas, desregulando e desmontando órgãos de controle, corrompendo com prendas diversas as forças de segurança, pondo-se a serviço dos delírios inconstitucionais de alguns de seus membros. Também fez de tudo para armar a população contra si mesma, para implodir e desestabilizar as instituições.

Daí o aparente absurdo, embora essa sempre tenha sido a tática bolsonarista, de tentar desvinculá-lo dos atos do dia 8, chegando ao cúmulo de atribuir a supostos esquerdistas infiltrados a responsabilidade do crime, depois de tê-lo defendido e incentivado de maneiras mais ou menos dissimuladas ao longo dos anos.

Por razões opostas, analistas de diversos extratos também tentaram circunscrever a barbárie a uma minoria ignara e radical, como se ela nada dissesse dos eleitores de Bolsonaro não diretamente envolvidos nos atos.

Há, entretanto, um elemento da performance do dia 8 que acaba unindo os dois grupos (ativos e passivos) no próprio esforço de desvinculação. Quase tudo o que vimos da destruição do Congresso, do Palácio do Planalto e do STF se deve a selfies orgulhosas e registros da cena do crime gravados pelos próprios criminosos. O que esperavam que ocorresse?

Nas selfies há uma cisão entre ato e responsabilidade. A conexão entre os dois só pode ocorrer pela lei. A queda no real, num segundo momento, a ressaca da alucinação bolsonarista, com as prisões, as investigações e os indiciamentos, fez com que os vídeos de repente começassem a desaparecer, apagados pelos próprios agentes que os gravaram para registrar suas ações antes "heroicas e patrióticas".

Já ouvi gente em princípio civilizada dizer que votou em Bolsonaro pela segunda vez porque não tinha escolha, tapando o nariz, repetindo o mesmo mantra de 2018, como se não houvesse história, memória, experiência ou responsabilidade.

Tem a ver com o autoengano de um identitarismo ideológico, infantilizado e oportunista, para o qual a justiça é um estorvo: o culpado é sempre o outro. Ninguém assume nada nunca. Se tive de votar em Bolsonaro, foi culpa do "comunismo".

Os que dizem ter tapado o nariz para votar em Bolsonaro também taparam o nariz para os criminosos do dia 8, mas como se fossem coisas diferentes, assegurando que o ex-presidente (assim como a parte da polícia e das Forças Armadas aparelhada e corrompida por e com ele) nada tem a ver com o crime. Se o ex-presidente tiver a ver com o crime, eles também terão. A conexão é insuportável. A responsabilidade associa "gente de bem e de Deus" a criminosos.

Pouco a pouco, vai se delineando o papel de militares no que culminou com os atos de vandalismo contra a República. Não haverá "pacificação" sem que os responsáveis assumam, sob a pena da lei, sua parte no horror. Mas também não dá para continuar a perpetrá-lo no conforto do lar, com a mão no nariz, dizendo que não tem nada a ver com isso, ou conspirando, à espera de uma nova oportunidade, atrás dos muros dos quartéis. A irresponsabilidade e a covardia são a base do modo de agir bolsonarista.

O governo Bolsonaro foi um longo ato de incitação contra a República, e não podia ser outra a sua consequência. Bolsonaro tomou o partido do crime contra os bens públicos. Grileiros, garimpeiros e madeireiros ilegais. Chefes da milícia.

Desvincular-se dele significa uma condenação enfática não apenas do personagem mas do que ele representa. Significa fazer as conexões, assumir as responsabilidades. Ou ficaremos à espera do próximo ataque, para sempre à espera dos bárbaros, quando faz tempo que eles estão entre nós.

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