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Rodrigo Nunes

Ataque golpista em Brasília é sinal de força e fraqueza do bolsonarismo

Sem liderança explícita do ex-presidente e condições de concretizar insurreição, segmento pode se radicalizar ainda mais

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Bandeira do Brasil vista atrás de vidro quebrado na fachada da sede do Supremo Tribunal Federal, na praça dos Três Poderes, em Brasília Ricardo Moraes - 10.jan.23/Reuters

Rodrigo Nunes

Professor da Universidade de Essex e da PUC-Rio. Autor de "Do Transe à Vertigem: Ensaios sobre Bolsonarismo e um Mundo em Transição" e "Nem Vertical Nem Horizontal: uma Teoria da Organização" (no prelo)

[RESUMO] O bolsonarismo viveu uma derrota política e uma vitória social desde a eleição de Lula. O apoio ao golpismo adquiriu custo alto demais para atores como parlamentares e militares, mas o movimento mostrou ter adesão considerável. O grupo que promoveu o ataque inédito à democracia brasileira no último domingo (8), que teve semelhanças e diferenças com a invasão do Capitólio, deve se divorciar ainda mais da realidade. A situação demanda, além da punição de criminosos, a desbolsonarização de instituições como as Forças Armadas e polícias e o enfrentamento de crises que estão na raiz da expansão da extrema direita.

Antes mesmo do início da campanha presidencial —na verdade, literalmente desde os tumultos de 6 de janeiro de 2021 em Washington—, estava claro que o bolsonarismo cogitava uma invasão do Capitólio para chamar de sua.

Como Donald Trump em 2016, Jair Bolsonaro já semeava, antes mesmo da eleição que venceu em 2018, a ideia de que qualquer resultado que não um triunfo maciço seria sinal de fraude e justificaria o uso da força por seus apoiadores. Com isso, comunicava o mais importante: independentemente de acreditar ou não nas mentiras que contavam sobre o processo eleitoral, ele e sua base social só reconheceriam como legítima a vontade expressa nas urnas se ela fosse igual à sua.

Golpistas apoiadores de Jair Bolsonaro durante invasão do Palácio do Planalto - Adriano Machado - 8.jan.23/Reuters

Ninguém pode dizer que não estava avisado.

São as diferenças, contudo, não as semelhanças entre os atos do último domingo (8) em Brasília e os ocorridos há dois anos na capital dos Estados Unidos, que mais têm a nos dizer sobre o que está acontecendo hoje no país.

Lost in translation

A mais importante dessas diferenças é o timing. Por mais que tenha sido atabalhoada, a invasão do Capitólio respondia a um cálculo estratégico evidente. Seu objetivo era impedir a ratificação da vitória de Joe Biden, evitando que sua eleição virasse fato consumado e mantendo aberta, assim, a possibilidade de que os republicanos, manobrando o bizantino sistema eleitoral estadunidense, encontrassem um modo de entregar a faixa a Trump.

No Brasil, a ocupação de estradas e os acampamentos em frente a quartéis que vieram após o segundo turno foram um óbvio balão de ensaio para testar as chances de um movimento nesse sentido. Embora tenham impressionado por seu tamanho e duração —em grande parte devido à ajuda de fontes de financiamento que ainda estão por ser identificadas—, elas foram claramente insuficiente para criar as condições para uma virada de mesa.

Com isso, todos os prazos relevantes ficaram para trás — anúncio do resultado, diplomação, posse—, e a possibilidade de reviravolta tornou-se cada vez mais remota. Prova disso é o apoio imediato que Lula recebeu da comunidade internacional e do establishment político brasileiro depois do ataque em Brasília.

Isso deixou o custo de apoiar explicitamente o golpismo alto demais para atores que têm algo a perder, como parlamentares eleitos e militares. Sem esses, a base bolsonarista não têm os instrumentos institucionais necessários para alcançar o que almeja; mas esses, por mais que possam ser simpáticos aos objetivos da base, só se moveriam se ela demonstrasse uma força muito superior à que efetivamente tem.

Outra diferença importante entre o Brasil e os Estados Unidos está na organização. Trump talvez não possuísse uma estrutura informacional tão capilarizada quanto Bolsonaro —uma pirâmide impressionante de grupos de WhatsApp, Telegram e igrejas cujo vértice ficava em uma sala ao lado do gabinete presidencial no Palácio do Planalto.

O presidente norte-americano, no entanto, contava com grupos muito mais organizados em sua base, e quando esses começaram a se mobilizar para o 6 de Janeiro, ele rapidamente posicionou-se como líder. No fim, seria de sua própria boca que partiria a ordem para a marcha rumo ao Capitólio.

Já Bolsonaro, desde a derrota, tem como preocupação quase exclusiva minimizar os riscos político-legais que cercam ele e sua família e, por isso, abdicou por completo da liderança explícita do movimento golpista.

Isso não exclui a possibilidade de que se comunique com os organizadores nos bastidores, mas o fato é que, há meses, ele não lidera publicamente suas tropas, exceto na imaginação dos seguidores mais fanáticos, que leem em seus silêncios constrangidos e afirmações vagas profundas mensagens em código.

Esse delírio hermenêutico permanente em que vive o bolsonarismo raiz, aliás, foi também o que permitiu a militares e congressistas continuar praticando o contorcionismo de sinalizar à base raivosa que estavam do seu lado enquanto comunicavam ao establishment que não ofereciam nenhuma ameaça. Essa acrobacia passou a ser bem mais difícil desde o último domingo.

O enigma da pirâmide

Quem está à frente das mobilizações dos últimos meses, então? Muito já se observou que a nova extrema direita global tem uma estrutura semelhante aos esquemas de pirâmide. Ao contrário do fascismo histórico, que se apoiava em movimentos hierárquicos de perfil paramilitar, ela depende de enxames de empreendedores políticos, para quem as redes sociais são instrumentos para acumular simultaneamente influência e ganhos financeiros. A relação desses empreendedores com líderes como Trump e Bolsonaro é simbiótica, de alimentação mútua.

Com o recuo do topo da pirâmide bolsonarista, é o estrato intermediário que está tomando a iniciativa. O que esse grupo percebeu é que o refluxo das esperanças golpistas deixaria órfão o segmento do bolsonarismo que comprou mais completamente as narrativas que o construíram e sustentaram —aqueles para quem a vitória de Lula representa uma ameaça existencial iminente, o que faz de qualquer rendição ao princípio de realidade política uma traição pura e simples.

Manter esse setor aceso apesar das chances cada vez menores de sucesso é, para esse escalão intermediário, uma forma de conservar a própria base diante do risco de esfarelamento, ao mesmo tempo que se cacifam para representá-la em voos futuros.

Os acampamentos golpistas e os atos do último fim de semana são, assim, o encontro entre dois tipos de desesperados sem muito a perder: os oportunistas querendo espremer as últimas vantagens dos tempos de vacas gordas e os atormentados para quem o fim da fantasia equivale ao fim do mundo.

Por trás deles, dividindo-se entre essas duas categorias, estão os financiadores —em geral, representantes da baixa elite em que se concentra o bolsonarismo mais fervoroso. Trata-se não mais do grande capital, que já se resignou à vitória petista e até se alegra com a perspectiva do fim da instabilidade e da inépcia dos últimos anos, mas do pequeno capital familiar e dos setores mais atrasados do agronegócio, de menor integração aos mercados financeiro e internacional, e do extrativismo selvagem que operou sem controle nos últimos quatro anos (madeireiros, donos de garimpo).

Essa composição social e falta de alavancagem política resultam em ações mais expressivas e simbólicas que estratégicas.

Há duas diferenças sintomáticas entre os fatos ocorridos em Washington e em Brasília: enquanto, no primeiro caso, o alvo era uma sessão parlamentar em andamento, no segundo atacaram-se prédios vazios em um dia sem expediente; enquanto os norte-americanos restringiram-se a tentar coagir o Legislativo, os epígonos brasileiros foram à desforra contra os três Poderes, em um reconhecimento implícito de que não encontram respaldo em nenhum deles. Quanto mais se torna uma cruzada das crianças, mais o golpismo brasileiro tende a se parecer com as invasões bárbaras.

Essa falta de futuro importa pouco para influenciadores que visam gerar imagens e emoções de confronto e para uma base que deseja sentir que lutou até o fim. Isso, porém, não significa que o movimento não possa fazer muito estrago, especialmente quando conta com a leniência escandalosa do aparato de segurança, como foi o caso no Distrito Federal.

Aí reside outra diferença importante entre Estados Unidos e Brasil. Embora seja simplesmente falso sugerir que não há infiltração de extrema direita entre policiais e militares no país de Trump —a própria invasão do Capitólio expôs essa realidade—, as forças de segurança no Brasil têm uma preferência escancarada por Bolsonaro. Além disso, embora essa predileção não seja grande o suficiente para fazê-las embarcar na aventura de um golpe, ela não deixará de produzir efeitos enquanto não for enfrentada.

A era da inocência

Desde que trolls e militares passaram a ocupar cada vez mais espaço na política nacional, normalizou-se um jogo de duplicidade em que era admissível que figuras públicas apoiassem ideias e ações extremistas, contanto que simulassem uma retratação no dia seguinte, e que oficiais de alta patente assumissem posição política, contanto que as Forças Armadas emitissem notas assegurando respeitar sua missão constitucional.

Essa prática, em que um faz que não disse o que disse para que outro possa fingir que não ouviu o que ouviu, parecia se justificar diante da espada de Dâmocles que a identidade entre Bolsonaro e o generalato fazia pairar por sobre a democracia brasileira: melhor não falar grosso com quem sempre pode falar mais grosso que nós.

Ela também ajuda a explicar porque, há menos de uma semana, não faltavam comentadores para descrever a demanda por investigação e punição dos crimes cometidos no governo passado como revanchismo.

O que os eventos de domingo demonstraram é que permitir que figuras públicas deem declarações que atiçam o extremismo, mesmo quando na prática fazem o contrário, não é sem consequências. Mais que isso, ficou claro que a diferença entre o que o indivíduo privado pensa e o que a instituição pública faz importa pouco em situações em que a inação institucional é suficiente para permitir que alguns façam do terror um meio para atingir seus fins.

Nesse sentido, a reação dos últimos dias sugere que o ataque em Brasília pode ter sido um grande tiro pela culatra. Além de atrair a atenção da polícia e do judiciário para as "72 horas de caos" que os grupos de WhatsApp prometiam para esta semana, reforçou o pleito em favor do desmantelamento dos acampamentos em frente a quartéis e pela investigação de seus financiadores e pôs na mira do Judiciário milhares de soldados rasos e lugar-tenentes do bolsonarismo —e talvez até um ou outro parente de general.

Mais que isso, elevou consideravelmente o custo de ser visto fazendo afagos ao extremismo, dificultando a vida de quem vem há anos jogando com a duplicidade. Por último, tornou mais difícil sustentar a conversa mole sobre "revanchismo" e aumentou o apoio para medidas mais enérgicas para "desbolsonarizar" as instituições brasileiras.

Boa notícia, então? Sim e não. O pós-eleição marcou, ao mesmo tempo, uma derrota política e uma vitória social do bolsonarismo. Politicamente, ele se desarticulou e viu seus principais interlocutores tomarem distância, ainda que continuassem fazendo acenos à base. Socialmente, ele demonstrou um poder ímpar de gerar adesão e compromisso em parte expressiva da população.

É provável que essa bifurcação leve a outra e vejamos, nos próximos meses, uma corrida para reivindicar um pedaço do espólio político de Bolsonaro mediante a criação de uma extrema direita "moderada", disposta a aceitar mediações institucionais e comprometida (ao menos a médio prazo) com o jogo democrático.

O segmento que foi às ruas no domingo, no entanto, continuará existindo, e a repressão e a perda de interlocução tendem a radicalizá-lo ainda mais. O que é pior, não faltarão oportunistas para explorar esse filão, incitando-o e fazendo seu divórcio da realidade crescer ainda mais, nem oportunistas na classe política para acolhê-los de volta ao mainstream caso o movimento volte a crescer.

O risco de isso virar uma massa à espera de líderes ainda mais extremos —e um caldo de cultura em que a violência estocástica de "lobos solitários" vai fermentar permanentemente— é alto. Se há algo que aprendemos nos últimos anos é que poucas coisas são mais perigosas que pessoas majoritariamente brancas e do sexo masculino sentindo-se traídas e impotentes.

Combater essa ameaça exige medidas imediatas no sentido de responsabilizar quem cometeu e quem organizou os atos dos últimos meses, desbaratar as redes de financiamento e desinformação que os sustentam, identificar e punir agentes públicos que lhes deram apoio ou guarida. Mas isso ainda não ataca as origens mais profundas do que vimos no domingo e nos últimos anos.

É preciso lembrar que Bolsonaro é menos causa que sintoma: um produto da cultura de nosso aparato de segurança e de traços extremamente disseminados em nossa sociedade. "Desbolsonarizar" o Brasil implica, assim, muito mais que investigar os crimes do último governo e afastar seus simpatizantes do poder.

Significa repensar radicalmente a formação de nossas polícias, começando por sua desmilitarização, e a formação de nosso oficialato e Estado-Maior. Significa confrontar as desigualdades e preconceitos de raça, gênero e classe e encontrar respostas para o ressentimento social e a solidariedade negativa de que se alimenta a extrema direita.

Significa, finalmente, entender que o sentimento antissistêmico difuso de que a extrema direita soube se apropriar na última década é a expressão de um presente atravessado por diversas crises —econômica, de legitimidade política, do ambiente em que vivemos— que permanecem sem solução. São essas, em última análise, que nos toca enfrentar.

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