Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Descrição de chapéu Livros

Ensaísmo de Anne Carson é original e inclassificável

Encanto da escritora canadense pela contradição resulta na 'forma suja' de seus textos, que colide com a ordem patriarcal

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Num dos melhores ensaios da coletânea "Sobre Aquilo em que Eu Mais Penso", organizada por Sofia Nestrovski e Danilo Hora para a editora 34, a helenista e poeta Anne Carson parte da ideia disseminada entre os filósofos gregos de que a mulher é conteúdo sem forma, vazamento, sujeira, para em seguida associar o feminino, numa virada sensacional, a tudo o que realmente importa em arte e literatura.

A "sujeira" é o que está fora do lugar, a cadeira em cima da mesa, a mesa atravancando o corredor. A definição é fundamental tanto para a crítica como para a criação literária. A literatura existe não pelo que (nos) confirma e conforma, a obediência às regras, a correspondência à ordem, às distinções e às demandas, mas pelo que não esperamos encontrar nela, o que escapa, escorre, transborda. O inesperado, o que nos surpreende fora do lugar. É o contrário do academicismo. E, nesse sentido, "sujo" (original e inclassificável) é o próprio ensaísmo praticado por Anne Carson.

retrato de mulher branca com cabelos grisalhos
A escritora canadense Anne Carson - Jeff Brown - 3.mar.21/The New York Times

A ensaísta desautoriza a forma em sua associação com a masculinidade e a ordem patriarcal. A forma é norma, regra, limite, rigidez, domesticação. O avesso da literatura. Acontece que todo texto é forma. Não há sujeira indistinta, confundida com o informe. E aí começam as contradições, sem as quais tampouco existiria literatura. A forma pode ser fôrma, contenção, mas é também condição de possibilidade de outros sentidos, abertura de caminhos, escoamento.

A originalidade do ensaio de Carson não faz dela uma voz dissonante. Vivemos um tempo de revisão do masculino, mas também de banalização da narrativa e de desqualificação generalizada da forma.

Noticiado pelo jornal The New York Times, um caso recente em que o direito à forma foi negado a duas escritoras, uma negra e iniciante, a outra branca, autora reconhecida de best-sellers, por não corresponderem ao que se esperava delas moral e politicamente, mostra que também há fôrma sem forma (antes da forma e contra ela), barragem à formulação de desvios e transbordamentos.

Meses antes da publicação, o enredo dos dois livros vazou num influente fórum de leitores na internet, provocando uma avalanche de avaliações negativas baseadas nas sinopses. Era inadmissível, para esses potenciais leitores indiferentes à forma, que o romance escrito por uma negra tratasse de uma relação amorosa entre uma negra e um colega de trabalho branco e racista, assim como era inadmissível uma americana escrever uma ficção ambientada na Rússia soviética, enquanto os russos atacavam a Ucrânia. Foi o suficiente para o fracasso de vendas de um e o adiamento por tempo indeterminado da publicação do outro.

A imperfeição define o ensaio como gênero heterodoxo em seu modo aproximativo. É a contrapartida do que só pode ser dito por desvios, tentativa e erro, ideias experimentadas fora do lugar. O encanto de Carson pela contradição, pela expressão do que só pode ser alcançado pela interrupção ou pelo silêncio, resulta na "forma suja", híbrida, de seus ensaios.

A autora faz o elogio do erro como possibilidade de surgimento do inesperado, mas tampouco há erro sem forma. "O quê da questão para os humanos é a imperfeição." O clichê "errar é humano" serve tanto de desculpa/explicação para o destino do homem e sua autodestruição como de possibilidade de desvio da norma, salvação. O erro é ao mesmo tempo a regra e a exceção, a condenação e a saída, a forma e a sujeira.

A associação entre narrativa e clichê faz eco à desautorização da forma. "Seres humanos são criaturas que anseiam por uma história", Carson escreve em seu ensaio sobre o silêncio e o intraduzível. É uma velha questão das artes e da poesia. Nos últimos tempos, porém, o sentido rebaixado de narrativa como clichê encobrindo o real extrapolou o debate estético e literário para se impor ao senso comum. A narrativa se tornou desautorização da verdade.

É humano generalizar, atribuir essência e identidade a grupos heterogêneos e indivíduos incompatíveis, encobrindo as diferenças sob formas simplistas. Faz parte do rebaixamento da narrativa, do barateamento dos sentidos.

Ao contrário, atribuir beleza e força ao que escapa, ao incongruente, supõe que a "sujeira" não pertença em essência a ninguém (nem a homens nem a mulheres), nem a um lugar fixo. Ela é resultado de relações, contextos, confrontos e cruzamentos. É o contraditório, o intraduzível, a possibilidade de uma verdade mais complexa, desconfortável e inesperada, a princípio impossível. A literatura depende dela. Talvez não só a literatura.

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