Bernardo Carvalho

Romancista, autor de 'Nove Noites' e 'Os Substitutos'

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Descrição de chapéu Livros África

Literatura não é cartilha nem palavra de ordem

Romance de Mohamed Mbougar Sarr é alternativa ao moralismo e à demagogia

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Só mesmo uma coincidência infeliz para me fazer ler na mesma semana duas resenhas que, em nome da ética, aproveitavam o espaço da crítica para dar lições de moral.

Na primeira, o resenhista puxava a orelha de um autor morto, como se ele estivesse furando a fila do transplante de órgãos ao relatar seu esforço para participar dos testes de um medicamento experimental contra o HIV nos anos 1980. Na segunda, outro resenhista fazia de sua tribuna a condenação de um autor que incorporou em seu livro as cartas da mãe, agora demente, sem lhe pedir autorização.

"Vida e arte são distintas, pensou Zuckerman, o que pode ser mais claro? Entretanto, que a escrita seja um ato de imaginação parece deixar todo mundo perplexo e furioso", Philip Roth escreveu em "Lição de Anatomia", de 1983. Nesse meio tempo, onde foi parar a inteligência?

ilustração colorida em roxo, rosa e amarelo
Ilustração de Zansky para a capa de 'A Mais Recôndita Memória dos Homens' (ed. Fósforo), de Mohamed Mbougar Sarr, que venceu o Goncourt - Divulgação

Como alternativa ao moralismo e à demagogia, Mohamed Mbougar Sarr, vencedor do prêmio Goncourt de 2021 com "A Mais Recôndita Memória dos Homens" (Fósforo), propõe a volta a um ideal juvenil de literatura, à literatura como aventura existencial, que já era o partido de Roberto Bolaño (1953-2003), uma das duas principais referências literárias do romance.

A outra é Yambo Ouologuem (1940-2017), escritor malinês, autor de um livro mítico, "Le Devoir de Violence" (1968), ao qual deve sua fama e sua desgraça.

Ouologuem recebeu o prestigioso prêmio Renaudot por seu romance incensado como obra-prima ao mesmo tempo que era atacado como traidor da negritude, até começarem as acusações de plágio. O livro foi retirado do mercado e o autor desapareceu do dia para a noite, sem contestar os ataques. Em 2018, após sua morte, "Le Devoir de Violence" foi reeditado e reconhecido em toda a sua grandeza e originalidade.

É também a obra extraordinária e o mistério do silêncio de um autor africano acusado de plágio, em 1938, e destruído por uma campanha violenta, desaparecendo para sempre depois de ter conhecido a glória fugaz, que atraem o protagonista e jovem escritor senegalês no romance de Mbougar Sarr.

Ele teria tudo para tirar as conclusões morais mais imediatas de uma história que revela, como a de Ouloguem, as perversões coloniais e do racismo, mas está obcecado pela obra, prefere reviver a história como experiência, por meio da literatura. O mundo como mistério, aventura e investigação. Mundo desconhecido que exige a formação ética diante da insuficiência dos preceitos morais.

Há alguns anos uma estudante alemã me confrontou com o que lhe parecia um destino inexorável e revolucionário: "Daqui pra frente a literatura será política ou não será". Política, sim, eu respondi, moralista, não.

A armadilha colonial e racista representada em "A Mais Recôndita Memória dos Homens" expõe uma situação paradoxal e perversa. Já não basta afirmar nem negar a identidade. Muitas vezes afirmação e negação se confundem e se alimentam. A moral não dá conta da complexidade do mundo. É dessa insuficiência que nasce a política da literatura, o romance como exercício da ética.

A energia juvenil desse projeto de descoberta do mundo faz com que algumas passagens soem grandiloquentes. A irregularidade é parte do estilo romanesco derramado, mas também vital, alternância entre trechos pontificantes meio ridículos e outros deslumbrantes. A verdade está entre os dois, entre afirmação e negação, no confronto de personagens, ideias e experiências.

Uma das passagens mais contundentes é o e-mail de um escritor congolês que decide voltar às origens, em reação aos efeitos mais nefastos e inerciais do colonialismo, decisão que nem o protagonista nem o autor, igualmente conscientes do seu lugar, pretendem seguir.

A tragédia do escritor injustiçado e desaparecido no livro foi apenas inspirada na história real de Yambo Ouologuem, mas faz sentido que seja ele e não outro o objeto dessa inspiração. Como pode um romance acusado de plágio, banido, esquecido por 50 anos, renascer graças a sua originalidade? A ironia dessa incongruência, divergência radical de perspectivas, é o ponto nevrálgico do que se pode chamar de política na literatura.

É perturbador (ou talvez tenha sido em algum momento) pensar que "Le Devoir de Violence" possa ser as duas coisas ao mesmo tempo, plágio e originalidade indistintos. E que a experiência da leitura crítica tenha aí um papel decisivo. Literatura não é cartilha nem palavra de ordem. Ela é feita de reflexão, confronto e coexistência de perspectivas em princípio incompatíveis. É o avesso do que se dá por certo.

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