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Livros

Samuel Beckett se revela poeta em livro inédito, completo e cuidadoso

Coletânea procura socorrer o público não especializado com notas que esclarecem as novas facetas do irlandês

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Luisa Destri

Doutora em literatura brasileira pela USP e coautora de "Eu e Não Outra - A Vida Intensa de Hilda Hilst"

Poesia Completa

  • Preço R$ 82,90 (288 págs.)
  • Autoria Samuel Beckett
  • Editora Relicário
  • Tradução Marcos Siscar e Gabriela Vescovi

"A poesia de Samuel Beckett é um desafio", afirma Marcos Siscar, poeta e professor da Unicamp, ao apresentar o volume dos poemas completos do autor irlandês, que traduziu em parceria com a pesquisadora Gabriela Vescovi.

A frase, que poderia ser banal caso se referisse apenas ao esforço de tradução, funciona, na verdade, como uma efetiva porta de entrada para o leitor, que se sentirá desafiado de muitas maneiras pela leitura dos textos.

homem idoso de óculos na testa e casaco até o pescoço
O escritor irlandês Samuel Beckett - Divulgação

Primeiro, há o lugar ocupado pela poesia no conjunto da produção do autor. Beckett, um dos mais importantes escritores do século 20 e agraciado com o Nobel em 1969, é pouco conhecido como poeta. Tornou-se influente sobretudo por seu teatro do absurdo, como ficaram conhecidas peças como "Esperando Godot", talvez a sua principal obra, e romances como "Molloy" e "Malone Morre".

No entanto, escreveu versos ao longo de toda a vida. Publicou seu primeiro poema aos 24 anos e editou alguns conjuntos, mas jamais organizou uma edição mais completa. Não há, assim, uma reunião que possa ser chamada definitiva. Na falta desta, a edição brasileira segue, entre outras opções disponíveis, um volume publicado pela Grove Press em 2012.

A situação editorial faz pensar no valor que o próprio escritor atribuía aos seus versos. Não fosse Beckett a voz por excelência da ideia de que nada na experiência moderna tem valor, seria possível ler na primeira estrofe de um poema como "Cascando" não um recurso retórico, mas um efetivo autoexame: "Por que não meramente desesperar da/ ocasião de verter/ palavras// não é melhor abortar que ser estéril?".

Nesse contexto, o tradutor defende que a escrita em versos "tem interesse próprio como parte da obra e como modalidade da escrita beckettiana", tendo "consistência como recorte criativo" e condensando "referências, temas e dispositivos de estilo" que formam a visão da história e da literatura que reconhecemos como a de Beckett.

E, de fato, há um desenvolvimento próprio que a organização do livro procura evidenciar por meio da ordenação cronológica dos conjuntos. Separados em pré-guerra e pós-guerra, os poemas são inicialmente herméticos, valendo-se de uma torrente de referências eruditas para figurar experiências predominantemente pessoais.

É o caso das diferentes composições que, em "Ossos de Eco e Outros Precipitados", retratam caminhadas por Dublin, no país natal de Beckett, e Paris, onde passou a viver a partir de 1936. Embora recortem elementos das cidades, apontando para a experiência coletiva, as sequências intituladas "Enueg", "Sânie" e "Serena", por exemplo, desenvolvem-se em torno de impressões subjetivas.

Já composições tardias abrem-se para dimensões mais amplas mesmo quando o tema diz respeito ao indivíduo. "Rondel", por exemplo, cujo título remete a um tipo de composição medieval que o leitor brasileiro talvez reconheça como "rondó", é um poema sobre a solidão. Em uma estrofe única de 13 versos, extrai o máximo de uma quantidade mínima de elementos, que se repetem e ampliam o significado inicial.

O desafio se instala cada vez mais na linguagem, ainda exigindo um esforço de interpretação do leitor e sem que seja obrigatório o mergulho na experiência empírica do poeta.

A edição, de todo modo, procura socorrer o público não especializado a quem se dirige, com notas, ao final do volume, esclarecendo referências eruditas e pessoais e sinalizando alguns caminhos de leitura. Sem esse aparato, a leitura de muitos poemas seria, para a maior parte das pessoas, não um desafio, mas uma impossibilidade.

Outro trunfo do livro é a tradução, lado a lado, das duas versões, inglesa e francesa, que Beckett deu a alguns de seus poemas. A escolha editorial não apenas preserva e ressalta uma rara capacidade de "autotradução", que o autor exercitou tantas vezes, mas também se cria um interessante corpus para discussão sobre os desafios próprios da tradução de poesia.

Nesse mesmo sentido, há, na seção "Bem Depois de Chamfort", as máximas do jornalista francês Sébastien-Roch Nicolas, que Beckett verteu para o inglês. Com cortes e adaptações que as tornam irônicas e atuais, o poeta acaba por produzir novos textos por meio da tradução. Já a versão em português, que objetiva preservar, e não transformar os originais, acaba por representar um terceiro grau da criação.

O leitor que topar o desafio poderá sair da coletânea com a sensação de ter descoberto novas facetas beckettianas, como o lírico que se confessa em "Alba" e o amigo que produz homenagem em acróstico, caso de "Para Casa, Olga", dedicado a James Joyce.

Mas também reencontrará a voz já conhecida, como aquela que parodia um verso célebre da mais alta tradição inglesa: "Contempla tua bunda e escreve", escreve Beckett, lembrando não ser um poeta que se identifica facilmente ao coração.

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