Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

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Bia Braune
Descrição de chapéu

Lidar com um ogro dos pincéis emotivo dentro de casa é uma difícil arte

Seu Brito era um pintor atormentado, um Van Gogh sem girassóis e campos de trigo, apenas rancor

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Olhando com boa vontade, até dava para fingir que era um nascer do sol de Monet. Porém, não passava de um escorrido laranja no meio da parede.

“Não disse? Essa cor mancha.” Seu Brito, meu pintor, não tinha paciência para a beleza policromática da vida. Como um pedaço de estopa embebido na aguarrás da tristeza, ele grunhia que amarelos e vermelhos também não ornavam. Cultivava especial antipatia por azuis. Sabe o arco-íris de energia que a Xuxa queria pintar? “Melhor não”, reclamaria Seu Brito.

Há anos, ele prestava serviços para mim e não falava da própria vida. Segundo fontes confiáveis (leia-se: o porteiro fofoqueiro), havia sido abandonado pela mulher e morava sozinho num muquifo bem atrás da rodoviária.

Ilustração de uma pessoa passando tinta branca sobre um mural colorido
Marcelo Martinez/Folhapress

Era, portanto, um pintor atormentado. Praticamente um Van Gogh sem girassóis e campos de trigo, apenas rancor. Trabalhava como quem sofria. Não ligava sequer um radinho. Só abria a boca para dizer: “Esse rosa aí? Ihhh, vão ser pelo menos quatro demãos.”

Foi na loja de tintas que percebi como a melancolia de Seu Brito estava entranhada em mim. Segurando o mostruário, eu já pulava dos tons vibrantes direto para os neutros. Afinal, aquele Renoir da angústia jamais aceitaria a alegria berrante de um Apoteose Púrpura ou a vivacidade ingênua de um Turquesa Splish Splash.

E, assim, virei a pessoa que compra um galão fosco e tristonho de Bege do Cáucaso.

Um dia, do nada, Seu Brito mandou um zap dizendo que abandonaria as pinturas para investir em churrasquinho. Tratei de apurar a outra metade da história. Segundo o porteiro fofoqueiro, Seu Brito também tinha se casado de novo. Ironia das ironias, o amor —que segundo Djavan é azulzinho— pegou de jeito. Abandonada, largada no chão, eu só conseguia olhar fixamente para o teto: estava descascando.

Foi quando me indicaram Júnior, que chegou feito o trem das cores. Tão impactante quanto o apartamento multicolorido do Oswaldo Montenegro. Virtuoso das lixas e das massas, ouve Phil Collins e louvores suingados enquanto aplica fita crepe nos rodapés. Sempre sorrindo. “Qual tinta vai ser dessa vez, patroa? Uma bem das suas, né?”

Desculpa, Picasso. Como não achar que Júnior é o maior mestre da pintura que eu já vi? Agora a vida não precisa mais passar em branco. Ou gelo. Ou Cinza da Moldávia.

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