Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Bia Braune

Caronas têm disso: no abrir do porta-luvas, você tem até a vida escancarada

Assento do passageiro deveria ser espaço reservado para gentilezas, mas costuma ser ocupado pela falta delas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Indo sozinha, são 38 quilômetros. O equivalente a oito músicas, meio podcast e uma ligação em viva-voz para marcar dentista. Indo com alguém, tudo vai mais rápido. Desde que o copiloto não fique perguntando se você já passou a quinta. Se não está vendo o buraco. Ou se não seria uma boa acelerar com o pacotinho de amendoim ainda pendurado no retrovisor.

Durante anos, trabalhei diariamente a essa lonjura de casa, o que me levou a precisar de automóveis e, confesso, companhia. Passageiros fixos ou ocasionais, seguindo minha escala de horários ingratos e imprevisíveis. No entanto, graças ao home office, me percebi saudosa de um jeito diferente. Carente de caronas.

Marcelo Martinez

Nenhum vínculo entre seres humanos será íntimo o bastante sem uma experiência a dois ou a três (sem preconceitos: cada um sabe da sua lotação) num cubículo sobre rodas. Engarrafou? O ar pifou? Sinal abriu, mas o motorista da frente está tirando uma selfie? Eis o chassi da classe média. O resto é magnata mauriçola chegando para reunião de helicóptero.

Assento de carona deveria ser espaço reservado para gentilezas, mas costuma ser ocupado pela falta delas. Gente que atende o celular e passa o trajeto inteiro conversando com outra pessoa. Ou que não contribui com o valor do pedágio. Ora, por mais que tenhamos o suficiente na carteira, apreciaríamos o oferecimento. Até mesmo para retribuir o gesto, de forma altruísta e grandiosa. "Puxa, você é legal. Pode comer biscoito, sim. Pode encher de farelos o carro que eu lavei ontem."

Mais do que conduzir alguém a um ponto, dar carona é se abrir para o mundo —inclusive quando ninguém consegue saltar por conta da trava de criança. É pegar o caminho de sempre na mão invertida, tendo com quem compartilhar o pequeno deslumbramento de um ponto de vista diferente.

E sobretudo perceber a intimidade com que seu rádio já reconhece o bluetooth da criatura que embarca precisando abrir o coração e ouvir umas sofrências. Aliás, quantas conversas só acontecem durante longas ou frequentes caronas. Quantos segredos revelados. "Tem chiclete?". A partir daí, são beijos consentidos. Convites para subir. Quando você nota, a pessoa já abriu seu porta-luvas e virou a chave da sua vida. Precisou nem fazer sinal com o polegar, no meio da rua.

Sim, talvez tenha chegado a hora de vender meu carro. Deixar essa quilometragem para trás. Ou talvez minha bolsa. Meu casaco. E tudo mais que decerto esquecerei largado, pegando agora carona com os outros.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.