De repente, meu celular vibra. Entra notificação de mensagem com foto. Retruco com emoji de coração, mas alguém espia por cima do meu ombro e se espanta. "Que é isso? Te enviaram retrato de um... mictório?". Sim, bem imundo. Tosco. Ogríssimo. No detalhe, porém, o foco gentil em azulejos de florzinha.
Toda semana recebo registros assim, de quem conhece minha paixão pela vida íntima desses quadradinhos. Eles, que não estão expostos no MoMA, mas nos frontispícios das residências antigas. Revestindo de nobreza aqueles botecos onde cliente ainda é recebido com cerveja e ovo cor-de-rosa.
Não existe argamassa mais terna para conectar ladrilhos e pessoas. Já tive dates que começaram não com o envio de um nude, mas o clique de um azulejo de cozinha que gerou match instantâneo. Sem falar nos modelos portugueses que, despudoradamente, vi outras pessoas também acariciando pelas fachadas de Lisboa.
Segundo o Iphan, há 47.873 peças na fachada do Palácio Capanema, no centro do Rio. Vinicius de Moraes, inclusive, fez poema a respeito. Tem noção do que é pular Carnaval e poder se encostar num legítimo Portinari? Fosse durante o calor de um beijo ou no apoio necessário à amarração de um cadarço de tênis. Debaixo de chuva e de sol, arte literalmente ao alcance do povo. Depois, encoberta pelo imenso tapume que embarreirou por anos a nossa cultura.
Djanira. Athos Bulcão. Burle Marx. Adriana Varejão. Esmaltados, exaltados. Eternizados por uma técnica que transforma cerâmica vitrificada numa expressão da beleza, até quando esta se revela a mais industrial e corriqueira. Eu, que estive diante dos girassóis de Van Gogh, quantas vezes não me flagrei mais comovida num cemitério de azulejos, ao avistar os ramalhetes esmaecidos que forravam paredes da casa onde nasci.
Numa época em que tanta gente prefere ser porcelanato retificado de fábrica ao invés de azulejo exposto ao tempo, acho reconfortante que exista uma Escadaria Selarón. No coração da Lapa carioca, 215 degraus de um mosaico caótico e exuberante que reflete o brasileiro, pelos olhos de um chileno. Assassinado aos pés da sua mais famosa obra, o artista teve a própria sepultura adornada nesse estilo.
"Se essa rua fosse minha", diz a cantiga de roda, "eu mandava ladrilhar". E mandava mesmo. No mictório, por trás do tapume, do alto de tantas insensibilidades, sempre haverá algo de sublime em meio à rudeza. Uma florzinha, um toque de humanidade, um quê de banheiro de tia-avó.
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