Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso
Descrição de chapéu América Latina férias

Um golpe em Cuba levou meus dólares e mudou minha vida

Fiquei a viagem toda em Havana para economizar e, dois dias antes da volta, conheci o homem com quem me casei

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Natalia Timerman

Escritora, mora em São Paulo

Esta história não poderia ser contada. Não por algum motivo factual, mas porque decidimos assim.

Já faz mais de nove anos que nos separamos e não sei mais em que momento a decisão foi tomada: ambos podíamos escrevê-la e, sendo ela nossa, pertencente a nós dois, que apenas um de nós o fizesse seria uma espécie de roubo, porque éramos ambos escritores. Ou melhor, ele já era; eu apenas queria ser. Isto que vocês leem, então, é fruto de uma apropriação indevida, uma contravenção.

Tudo começou com uma viagem a Cuba. Era janeiro de 2006, a ameaça de abertura econômica da ilha pairava havia tempos, e queríamos, minha irmã e eu, ter a chance de conhecer o comunismo, como se ele fosse uma atração turística. O plano era ficar alguns dias em Havana e viajar pelo país.

No dia seguinte à nossa chegada, sofremos um golpe. É constrangedor contá-lo, fica nítida nossa ingenuidade, mas estou aqui para dizer a verdade —e esta história não existiria sem o golpe. Saímos para caminhar até a Plaza de la Revolución, Che Guevara nos dando boas-vindas, não só ele, também um rapaz que se aproximou para conversar, onde estávamos ficando, de onde éramos, porque estava estampado em nossa cara judaico-russa que não éramos dali.

Ele falou de um grande festival de música nos próximos dias. Ficamos interessadas. Perguntamos onde poderíamos trocar dinheiro e ele disse que seria bom trocarmos bastante, pois os bancos funcionariam em horário reduzido para o festival, e explicou os três tipos de moeda: o peso cubano, o peso convertible e o peso central, do qual nunca tínhamos ouvido falar. Era algo recente mesmo, ele disse, uma moeda de transição para unificar tudo, e seguindo adiante encontraríamos um banco.

Algumas quadras depois, passado tempo suficiente para que já tivéssemos esquecido o primeiro, outro rapaz se aproximou, vestido de outro jeito, mais arrumado, um pouco mais velho, e nos interpelou: "las brasileras!". Disse ser vizinho de Mercedes, nossa anfitriã, e que estava lá ontem quando chegamos. Não lembrávamos?

Tínhamos chegado cansadas, zonzas, e acreditamos nele também quando confirmou as informações que o anterior havia passado e nos levou para tomar uma cerveja, mostrando pagá-la em peso central. Depois, nos deu carona para a frente de um banco, de onde saiu alguém a quem entregamos mais da metade de nossos dólares, recebendo de volta a quantia equivalente em inexistentes pesos centrais, que eram na verdade os velhos pesos cubanos que valiam 25 vezes menos que os convertibles.

Nosso dinheiro reduzido à metade levou por água abaixo os planos de viajar pela ilha. Ficamos 20 dias em Havana e economizamos para conhecermos tudo o que havia para conhecer e o que não havia. Dois dias antes de voltar, decidimos ir a um centro cultural escondido no guia turístico e na cidade, La Madriguera. Ao chegarmos, nos sentamos no canto de um palco observando o grupo de pessoas que conversava no outro, dentre as quais se destacava um cara de cabelo raspado e cavanhaque.

Ele se levantou e me frustrei com sua pouca altura, que ele compensava, descobri em seguida, com um jeito expansivo. Pareciam em reunião, e logo eles se aproximaram para conversar. Seguimos todos para um café, um ou outro deles nos deixando pelo caminho, e, quando nos demos conta, minha irmã e eu estávamos há horas conversando com aquelas figuras, dentre as quais aquele cara encantador.

É estranho escrever essa frase depois de quatro anos vivendo com ele. Depois de uma separação. O divórcio é como uma tinta de cor aberrante jogada por cima de uma tela que sempre tinha sido bonita. No mesmo dia, ainda fomos com meu futuro marido e um amigo dele assistir a um clássico do beisebol cubano, Industriales versus Santiago de Cuba.

Jogo histórico do qual todo habanero se lembra por ter sido aquele em que ocorreu a famosa invasão do campo —assistíamos da arquibancada sem saber que nossos anfitriões estavam igualmente boquiabertos— e sofremos uma tentativa de furto, revertida porque meu futuro marido correu atrás do ladrão e recuperou minha carteira.

Ele ainda nos recebeu em sua casa à noite, levadas pelo amigo que nos encontrou no intervalo do balé no Gran Teatro de la Habana. Parece que a viagem inteira aconteceu nos dois dias finais. Entrei no avião para o Brasil segurando o livro do meu futuro marido, com quem me correspondi o ano seguinte inteiro, e com quem, enfim, viajei por Cuba dois anos depois. Por quem gastei milhares de reais em chamadas telefônicas internacionais com hora marcada, porque na casa dele não havia telefone.

Quando, nos anos seguintes, contávamos a história do golpe, ele brincava que era o chefe da quadrilha. Mas isso foi bem depois de eu ter me despedido dele na esquina entre Paseo y G como se nunca mais o fosse encontrar —e se alguém dissesse àquela moça andando sozinha que ele seria o pai do seu primeiro filho, hoje com 11 anos, ela jamais acreditaria.

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