Casos do Acaso

Série em parceria entre a Folha e a Conspiração Filmes. Narrativas enviadas pelos leitores poderão se transformar em episódios audiovisuais criados pela produtora. Veja como participar no fim do texto

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Casos do Acaso

Meu pai ajudou um casal rico a reencontrar o filho perdido havia anos

O Cadillac de São Paulo estacionou em frente ao casebre do rapaz em uma vila do interior

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Quando meu pai desposou a filha do caseiro, estava a par de todas as renúncias que faria, e dos privilégios perdidos nas terras da família. Foi assim que meus pais acabaram em uma casa de pau a pique nos princípios da década de 40. Poucos fatos fora da ordem comum sucederam naqueles primeiros anos de matrimônio, afora o meu nascimento.

A chegada de um carro tirou a pacata vila de seu cotidiano. Composta por moradores que lutavam por seu sustento, não era rotina a presença de um automóvel. Muito menos daquele porte. Os ventos de junho prenunciavam o inverno quando um casal, por volta dos sessenta anos, desceu do Cadillac.

O senhor, passos afirmados pela bengala, aproximou-se do meu pai. Procurou as palavras em algum canto inacessível. "Sabe, meu filho, é que eu já contei essa história tantas vezes...", pronunciou. Estávamos arrebatados pelo timbre de desalento.

 Povoado quilombola do Sítio Muquém no município de União dos Palmares (AL), a 80 km de Maceió (AL). Muquém foi oficialmente reconhecido em 2005 pela Fundação Palmares como a única comunidade de remanescentes de Palmares, o maior e mais resistente quilombo das Américas. Estima-se que o início da formação date de mais de 200 anos, ainda no Brasil escravocrata
Casa feita de taipa, também conhecida como pau a pique, utilizando barro amassado - Beto Macário - 5.nov.17/UOL/Folhapress

Foi interrompido pela esposa. Sem mais delongas, a dama apresentou seu anseio: estava à procura do filho. Roubado quando criança há tantos anos. Já era homem feito. A vida toda a procura: viagens, detetives particulares, artigos em jornais, anúncios na rádio.

A ideia do filho sumido de uma família abastada de São Paulo estar naquele recanto, afastado da civilização urbana ascendente, era ilógica. Desconcertados, estávamos prestes a desfazer as expectativas de um encontro com o filho perdido. A senhora precipitou-se a contar que recebera uma informação. "Aqui é onde encontro meu filho", pronunciava com tanta segurança.

Sobre o informante nada disse. Apenas soubera da existência de um homem, idade do filho, criado por piedade por uma família de lavradores da região.

Meu pai, descrente, contou de um caso conhecido na vila. O rapaz morava com a esposa e os filhos perto do rio. Foi entregue, não se sabia por quem, na infância, em um casebre. Uma boca a mais para passar fome.

Afoita, implorou que a levássemos até a casa. Meu pai resignou-se a apontar o caminho. Ela agradeceu o tempo disposto e sussurrou em tom confessional, os olhos pregados no rio: "Eu já devo ter chorado esse rio em lágrimas".

Assistimos o Cadillac conquistar a rua, a poeira levantada pelos pneus. Meu pai experimentou um prazer que poucos vivenciam: o poder de mudar um destino. O indicador em riste decidiu muitos rumos daquele dia, com um simples apontar. Foi pelo dedo do meu pai que aquele casal pôde adormecer a inquietação que há décadas os dominava.

O desenrolar da situação chegou aos nossos ouvidos pelas línguas de conversas da vila. O Cadillac estacionou em frente ao casebre sem porta e o casal foi recebido por uma mulher, de juventude acentuada pela aparência raquítica. Encardida pelo trabalho na terra, cujos grãos misturavam-se ao cabelo, estava ladeada por crianças, os pés no chão batido.

A desolação do cenário não os afastou do propósito. O rapaz foi chamado no campo, as mãos e o rosto denunciavam os rastros de uma vida dura. Chegou com o chapéu de palha apertado contra o peito, querendo saber do que se tratava a visita dos "sinhô" da cidade. Os olhos nada disseram, foi reconhecido pelas costas. Uma marca de nascença na nuca foi o selo da fortuna.

Se era caso de assombrosa sorte ou uma mãe desesperada que via o que precisava para acalmar o coração inquieto, ninguém nunca saberia. Abstraindo o encontro com um filho calejado, cujos dentes se perderam para as mazelas, e perdoando até mesmo os modos broncos do homem, imploraram que ele os acompanhasse para São Paulo.

Uma vida boa o esperava, fartura e confortos que afastariam as lembranças da pobreza resignada. Poderia voltar depois buscar a mulher e os filhos, acaso não trabalhava tão arduamente para o sustento deles? O próprio rapaz pouco disse, o espanto da reviravolta da sorte atingindo-o em estupor. Por boa vontade ou por apelos, entrou no Cadillac, com destino a São Paulo.

Por meses esquecemos da falta do lavrador que partira. A família deixada sucumbia, resistia pela promessa de uma vida de provimento na capital por seus benfeitores.

Os boatos começaram apenas quando o verão trouxe o calor. Diziam que a mãe proibira o homem de voltar, trancara o filho no casarão em São Paulo. Outros diziam que a proibição era resultado de uma chantagem, se partisse, não retornava para os luxos, que agora tinha conhecimento, dificultando a renúncia.

Havia ainda os que acreditavam que ele, por gosto, deixou para trás a vida miserável que achou um dia ser a única possível. Dentistas e alfaiates conferiram ao moço uma aparência razoável para permitir uma respeitável noiva de família paulistana.

Soubemos da morte da mulher abandonada por uma antiga vizinha. Adoeceu e morreu em um piscar de olhos. Sabia que ele viria buscar os filhos, ao menos as crianças teriam uma boa vida, sorria distante nos delírios febris.

Dormimos em silêncio essa noite. Sentíamos, no íntimo, que antes do descanso da morte, a desafortunada mulher chorara o rio em sofrimento.

​ ​Para participar da série Casos do Acaso, o leitor deve enviar seu relato para o email casosdoacaso@grupofolha.com.br. Os textos devem ter, no máximo, 5.000 caracteres com espaços e precisam ser inéditos, não podem ter sido publicados em site, blog ou redes sociais. As histórias têm que ser reais e o autor não deve utilizar pseudônimo ou criar fatos ou personagens fictícios.

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