Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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Charles M. Blow
Descrição de chapéu The New York Times

Autodestruição de Ye, ex-Kanye West, só me faz perguntar: por que demorou tanto?

Ele estava sendo usado e usando os negros; ansiava fazer parte da arquitetura que mantém populações oprimidas

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The New York Times

Honestamente, nunca imaginei que esse episódio do drama de Kanye West durasse o tempo que durou. Certamente não previ que eu mesmo me importasse muito com isso. Pensei que eu me manifestaria uma vez sobre o assunto e então passaria para outro.

"Fanfarronice desmesurada derruba carreira de bilionário criador de sapatos feios e casacos oversized."

Achei que seria isso e pronto. Mas não foi. A adesão de West ao discurso antipretos, antissemita e supremacista branco não foi a única coisa que chamou a minha atenção.

Também venho observando as reações à queda dele, que, em todas suas contradições estranhas, estão expondo verdades desagradáveis sobre o poder nos EUA: quem pode e vai cobrar responsabilidade, como as grandes corporações exploram a cultura e o caráter até o momento em que isso coloca seus lucros em risco, como algumas pessoas absorvem e aceitam insultos e dão rédea longa demais a quem tem mais dinheiro e fama.

O rapper Ye em encontro com o então presidente dos EUA Donald Trump, na Casa Branca - Kevin Lamarque - 11.out.18/Reuters

Quero começar por dizer o seguinte: Kanye West, que agora atende por Ye, deveria ter virado pária quando falou que a escravidão foi uma escolha, tripudiando antepassados negros cujo sofrimento foi tudo menos uma escolha. Ninguém optaria pelo estupro para si mesmo, sua mãe, filhas ou irmãs. Ninguém optaria pela forca ou o açoite. Ninguém escolheria ter seu corpo dilacerado por cães ou enlouquecido pela fome.

Mas Ye não se deu por vencido. Pediu desculpas pouco convincentes, e as pessoas acabaram esquecendo como fora hedionda sua ofensa. Lotaram shows e compraram suas roupas. Grandes empresas apareceram em peso para se associar a seu nome.

Ye deveria ter virado pária quando derramou-se em elogios a Donald Trump no Salão Oval e disse a respeito de seu boné "Make America Great Again": "Me senti um Super-Homem com ele na cabeça".

Mas nada disso aconteceu. Os negócios continuaram. A lenda cresceu.

Enquanto ele era um negro assumindo posição em oposição aos interesses dos negros, Ye era um fenômeno. Era contracultura. Um agitador. Estava além e acima do pensamento e dos rótulos convencionais.

Mas é claro que ele não estava. Negros sabem há séculos que nome dar a pessoas como Ye, que se dizem a epítome da negritude, mas enriquecem às custas de difamar e mercantilizar a cultura negra. Existem muitos termos para designar o que ele é, mas um dos que pode ser usado sem medo de ofender é "vendido".

Mas a realidade é ainda mais complicada que isso —devido ao que séculos de exposição ao veneno da supremacia branca fizeram à cultura negra. As pessoas pretas que Ye mais ofendeu não tinham o poder de cancelá-lo; as com mais poder guardaram silêncio; a estrutura corporativa branca determinou que ainda havia dinheiro a ser ganho; e muita gente negra ainda estava impressionada com a riqueza de Ye e o modo como havia sido ungido a artístico e excepcional.

Ye tinha acordos comerciais com grandes grifes e estava ganhando dinheiro grande. Estava derrotando o sistema, muitos diriam. Era um gênio porque conseguia manipular a máquina que opera contra tantos negros, fazendo-a trabalhar para ele. Isso era poder. Isso era influência.

Nada disso. Ele estava sendo usado. E estava usando você.

Ye tem sido transparente sobre seu conceito de economia. Como cantou em "All Falls Down" (2004): "Traficante compra tênis Jordan, viciado compra crack / E o homem branco ganha com tudo isso".

Ele sabia, e sabe, que o objetivo de alimentar o consumismo negro gritante e até a dependência química é o lucro; existe poder nisso, que corporações brancas podem usar para ganhar dinheiro. Em vez de tentar virar essa mesa, Ye queria sentar-se à cabeceira dela. Em vez de ficar enojado com o braço econômico da supremacia branca, aspirava fazer parte dele.

Como disse em entrevista recente: "Eu me solidarizo com a posição do homem branco heterossexual, e parte do motivo é que sei que eu mesmo estou indo nessa direção". Agora Ye embarcou na onda do antissemitismo e simplesmente foi longe demais.

Ele divulgou um pedido de desculpas que é uma salada verbal, misturando Deus, samurais, África e "O Código Da Vinci". Foi um pouco como sua resposta a declarações sobre escravidão. Mas o perdão e o esquecimento não virão em tão pouco tempo desta vez —se é que haverá perdão e esquecimento.

Ye está se autodestruindo.

As grandes empresas finalmente disseram "já chega", e com razão. Isso levanta a pergunta obrigatória: o que as levou a demorar tanto? Será que desrespeitar pessoas pretas não foi o bastante? Mas sou obrigado a fazer a mesma pergunta a muitos pretos: o desrespeito de Ye por seus antepassados —e por vocês— não foi o bastante?

Ye não deveria ter podido usar uma camiseta com a inscrição "White Lives Matter" (vidas brancas importam) e defender seu gesto. Talvez as grandes empresas tenham calculado que podiam guardar silêncio porque tantos de nós o fizemos.

E quando as palavras ofensivas de Ye começaram a prejudicar seu bolso, ele se saiu com mais pedidos de desculpas. Desculpou-se por ter dito —contrariando evidências e testemunhas oculares— que George Floyd morreu de overdose de fentanil, não por asfixia. Como disse Ye, suas declarações "ofenderam os negros", por isso ele quis pedir desculpas. "Porque nesse momento, através do que a Adidas e a mídia estão fazendo, Deus me mostrou; agora sei a sensação de ter um joelho em cima do meu pescoço."

Mesmo o pedido de desculpas é problemático e narcisista. Um homem rico que está ficando menos rico em consequência da própria ignorância não está na mesma categoria que o linchamento de George Floyd no meio da rua.

Não estou dizendo que as pessoas não devem ter o direito de pedir perdão por ter dito coisas das quais se arrependem. Eu mesmo já fiz isso. Mas o problema aqui é o grau de ofensa, a qualidade do pedido e a repetição de um padrão. O fato de que Ye sempre volta a cometer o mesmo tipo de ofensa quer dizer que não são lapsos de linguagem —é o caráter dele que está se revelando.

Sei que em um mundo que oprime e fuzila homens negros, nunca queremos estar na posição de aplaudir quando um homem negro leva uma rasteira. Mas quando esse homem negro anseia fazer parte da arquitetura que mantém você oprimido, você, por uma questão de autopreservação, tem o dever de fazer vista grossa para isso.

Os judeus e o mundo têm razão em condenar Ye por seu antissemitismo. Essa mesma energia deveria ter se manifestado em relação à sua antinegritude. Não é uma questão de saúde mental. Saúde mental é algo muito real e precisa fazer parte da discussão. Mas ela não faz a pessoa aderir a ideologias racistas e a antissemitismo.

Não se trata de alguma estratégia magistral. Ele não está jogando xadrez enquanto todas as outras pessoas jogam damas. Está simplesmente interpretando a si mesmo.

E chega de dizer coisas como "E se tal pessoa...?". A hipótese de outra pessoa também ter sido ofensiva da mesma maneira não tem relevância para a culpa de Ye. Ele está errado. Ponto final.

A todos os apologistas de Ye, e existem alguns, o que digo é: parem de mimar esse ex-bilionário! Por favor.

Tradução de Clara Allain

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