Kamala tenta definir marca de sua Vice-Presidência e vê apoio democrata desidratar

Vice de Biden busca ampliar temas em seu guarda-chuva, mas correligionários dizem que ela não se firmou como liderança

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Zolan Kanno-Youngs Katie Rogers Peter Baker
Washington | The New York Times

Kamala Harris estava frustrada. O texto de um discurso que deveria fazer em Chicago para o maior sindicato de professores do país era apenas mais uma palestra enfadonha que dizia pouco de importante.

Enquanto o Air Force Two se dirigia para o Meio-Oeste, a vice-presidente dos EUA disse à sua equipe que queria falar algo mais significativo. Ela brandiu um artigo da revista Rolling Stone sobre a reação contra autoridades educacionais da Flórida após a nova lei que proibia debater identidade de gênero em aula.

A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, durante discurso na Filadélfia
A vice-presidente dos EUA, Kamala Harris, durante discurso na Filadélfia - Elizabeth Frantz - 3.fev.23/Reuters

Os professores a quem falaria em breve estavam na linha de frente das guerras culturais do país. Eram os mesmos que estavam na linha de frente sobre os ataques a tiros em escolas. Não bastaria verificar o financiamento federal para a educação. O avião estava a apenas uma hora de Chicago, mas ela disse que eles precisavam recomeçar. Quando pousou, Kamala tinha uma versão mais animada do discurso em mãos, acusando "líderes extremistas" do Partido Republicano de cancelar direitos e liberdades civis.

A pequena rebelião de Kamala naquele dia resumiu a armadilha em que ela se encontra. Ela fez história como a primeira mulher, a primeira afro-americana e a primeira asiático-americana a servir como vice-presidente dos EUA, mas ainda luta para definir seu papel muito além desse legado.

Sua equipe observa que ela fez progressos, emergindo como uma voz forte no governo sobre os direitos ao aborto. Ela também se posicionou como uma defensora mais visível do governo, fazendo um discurso na semana passada no funeral de Tyre Nichols, o jovem de 29 anos espancado até a morte por policiais em Memphis. E seus críticos e detratores reconhecem que a Vice-Presidência deve ser uma função coadjuvante, e muitos de seus antecessores também se esforçaram para ser relevantes.

Mas a dolorosa realidade para Kamala é que, em conversas privadas nos últimos meses, dezenas de democratas na Casa Branca, no Capitólio e em todo o país –incluindo alguns que ajudaram a colocá-la na chapa do partido em 2020– disseram que ela não havia encarado o desafio de se afirmar como futura líder da sigla, muito menos do país. Mesmo democratas a quem seus próprios assessores encaminharam repórteres para ouvir declarações de apoio confidenciaram em particular que haviam perdido a esperança.

Um pânico silencioso havia se instalado entre os principais democratas sobre o que aconteceria se o presidente Joe Biden optasse por não concorrer a um segundo mandato. A maioria dos democratas entrevistados, que insistiram no anonimato, disse não ver a possibilidade de Kamala ganhar a Presidência em 2024. Alguns disseram que o maior desafio do partido seria encontrar uma maneira de afastá-la sem inflamar importantes eleitores democratas que ficariam ofendidos.

Agora, parecendo quase certo que Biden concorrerá novamente, a preocupação com Kamala mudou para saber se ela será um passivo político para a chapa. Dado que Biden, aos 80 anos, é o presidente mais velho da história americana, os republicanos provavelmente fariam de Kamala, 58, uma linha de ataque principal, argumentando que um voto em Biden pode de fato ser um voto para colocá-la no Salão Oval.

"Esse será um dos argumentos mais contundentes contra Biden", diz John Morgan, arrecadador de fundos importante para os democratas, incluindo Biden, e ex-presidente de finanças na Flórida para o presidente Bill Clinton. "Não é preciso ser um gênio para dizer: 'Veja, com a idade dele, temos que pensar nisso'."

Até agora ela não se destacou, diz ele. "Não consigo pensar em nada que ela tenha feito, exceto ficar fora do caminho e estar ao lado dele em certas cerimônias."

Cerca de 39% dos americanos aprovam o desempenho de Kamala no cargo, de acordo com um recente agregado de pesquisas compiladas pelo site FiveThirtyEight. Isso a coloca abaixo do índice de aprovação de Biden, que oscilou em torno de 42% no mês passado. Aliados de Kamala disseram que ela estava presa em um dilema "maldita se ela fizer, maldita se não fizer" –espera-se que ela não faça nada para ofuscar Biden enquanto navega em questões intratáveis que o presidente lhe atribuiu, como direitos de voto e imigração ilegal. E alguns veem um duplo critério aplicado a uma proeminente mulher negra.

Ninguém sente a frustração de ser subestimado de forma mais aguda do que Kamala, mas ela faz questão de não exibir isso publicamente. Ao The New York Times enquanto estava no Japão ela tentou explicar sua própria identidade política. "Você tem que saber o que representa e, quando sabe, sabe pelo que lutar."

Como isso se traduz em termos concretos é menos claro. Depois de sua entrevista desastrosa a Lester Holt, da NBC News, em junho de 2021, na qual tentou articular a estratégia do governo para proteger a fronteira, funcionários da Casa Branca –incluindo alguns do seu próprio gabinete– observaram que ela praticamente entrou num bunker durante cerca de um ano, evitando muitas entrevistas pelo que, segundo os assessores, seria o medo de cometer erros e decepcionar Biden.

Congressistas, estrategistas democratas e outras figuras importantes do partido disseram que ela não se tornou uma líder formidável. Dois democratas relembraram conversas privadas nas quais a ex-secretária de Estado Hillary Clinton lamentou que Kamala não pudesse vencer porque ela não tinha instintos políticos para superar as primárias. Nick Merrill, porta-voz de Hillary, disse que ela apoiava fortemente Kamala e frequentemente falava com ela sobre as experiências de ser "uma mulher no poder". "Elas construíram e mantiveram um forte vínculo. Qualquer outra caracterização é evidentemente falsa."

Assessores e aliados rastreiam os desafios de Kamala em sua transição da advogada que costumava ser como promotora distrital de San Francisco e secretária de Justiça da Califórnia para um cargo onde o simbolismo e a política são prioridade.

Os assessores a encorajaram a se libertar do teleprompter e mostrar à nação a Kamala que eles dizem ver quando as câmeras estão desligadas, alguém que pode interrogar os formuladores de políticas sobre as complexidades das propostas legislativas e se conectar com os eleitores mais jovens em todo o país.

Kamala reconheceu suas reservas sobre se apoiar nos aspectos mais simbólicos de sua posição atual. "Meu viés sempre foi falar factualmente, falar com precisão sobre questões e assuntos que têm potencialmente grandes consequências", disse ela na entrevista no Japão. "Acho desanimador apenas me envolver em banalidades. Sem dúvida prefiro desconstruir um problema e falar sobre ele de uma forma que esperamos que eleve o discurso público e eduque o público."

Kamala costuma dizer a assessores graduados que se sente mais à vontade recebendo briefings de inteligência ou abordando policiais, locais onde ela diz que a substância é mais valorizada do que a política. Ela instruiu os funcionários a garantir que ela faça viagens para falar sobre as realizações do governo, como a Lei de Redução da Inflação, não apenas sobre as diversas crises que ele enfrenta.

Ela também questionou sua equipe sobre o acesso local ao aborto e como a decisão de derrubar Roe vs. Wade poderia levar à criminalização de autoridades médicas. "Ela tem seu chapéu de promotora nesse sentido", diz Alexis McGill Johnson, presidente da Planned Parenthood, que viu a vice-presidente tentar destilar questões complexas de saúde de uma forma que "cidadãos comuns" possam entender.

Meses depois de revisar seu discurso de Chicago, Kamala passou por nove rascunhos antes de fazer um discurso em Tallahassee, na Flórida, no 50º aniversário do caso Roe, no qual perguntou se os americanos podem "ser verdadeiramente livres" se uma mulher não puder tomar decisões sobre seu próprio corpo.

Vários participantes disseram que ficaram encorajados ao ver uma mulher negra falando sobre como as ameaças à decisão representam uma ameaça mais ampla aos direitos civis. Foi "muito poderoso ver alguém da minha semelhança nesta posição neste dia e era", disse Sabrita Thurman, 56, que é negra.

Os mais próximos de Kamala esperam que ela possa ir além da "política defensiva", diz Douglas Brinkley, historiador presidencial que organizou uma reunião em sua residência sobre o legado da Vice-Presidência e participará de outra sessão com ela nesta semana.

"Biden tem que lhe dar mais liberdade para ser ela mesma e não torná-la excessivamente cautelosa de que um erro, um erro retórico, custará muito ao partido", diz Brinkley. "É melhor deixar Kamala ser Kamala."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves 

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