Charles M. Blow

Colunista do New York Times desde 2008 e comentarista da rede MSNBC, é autor de “Fire Shut Up in My Bones"

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Descrição de chapéu The New York Times

Briga viral entre brancos e negros passa sensação de correção histórica; veja vídeo

Devemos entender que nenhum povo é obrigado a suportar violência sem se defender ou ser defendido

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The New York Times

Alabama Sweet Tea Party. Foi como as pessoas apelidaram uma briga envolvendo várias pessoas em uma doca fluvial em Montgomery, no Alabama. Captada em vídeos que viralizaram, a briga começou quando um grupo de pessoas brancas atacou Damien Pickett, cocapitão negro de um barco fluvial que estava tentando abrir um espaço para atracar, e um grupo de pessoas negras saiu em defesa de Pickett.

O episódio é lamentável sob alguns aspectos evidentes: a situação jamais deveria ter mergulhado na violência. As pessoas às quais foi pedido que movessem seus barcos para que o de Pickett pudesse atracar em sua vaga reservada deveriam simplesmente ter feito o que lhes foi pedido.

Damian Pickett, defendido em briga em Montgomery, no Alabama, cujo vídeo viralizou, é cocapitão do barco Harriot (foto)
Damian Pickett, defendido em briga em Montgomery, no Alabama, cujo vídeo viralizou, é cocapitão do barco Harriot (foto) - Julie Bennett/Getty Images/AFP

Sob outros aspectos, porém, muitas pessoas, especialmente negras, encararam o que aconteceu como uma reação lamentável mas praticamente inevitável ao que pode ser visto como uma sequência interminável de incidentes em que pessoas negras são vitimadas publicamente e ninguém se dispõe ou é capaz de intervir ou ajudá-las.

O fato de pessoas negras saindo em defesa daquele homem negro não foi apenas uma coisa específica que ocorreu em um lugar e um momento –foi também uma mudança de atitude, de certa forma, em relação às imagens mais memoráveis de uma história que abrange séculos de brutalidade direcionada a negros, algo que caracteriza a jornada das pessoas negras nesta terra que se tornou os Estados Unidos.

Desde o início da escravidão nos EUA, uma de suas características foi a brutalização das pessoas e dos corpos negros –os açoitamentos e estupros, negros sendo enforcados em árvores e seus corpos dados como alimento a cães—, enquanto outros de modo geral eram impossibilitados de defendê-los.

Esse tem sido um elemento tão presente na história negra que também se tornou um tema central da literatura negra.

No romance ganhador do Prêmio Pulitzer "Amada", de Toni Morrison, a protagonista, Sethe, e seu marido traçam planos para fugir da escravidão, mas são capturados. Ele está escondido no palheiro de um celeiro quando os sobrinhos de seu escravizador sugam o leite dos seios dela à força e a açoitam gravemente, deixando cicatrizes que, diz Sethe, parecem "uma árvore nas minhas costas".

O marido de Sethe assiste a tudo isso, mas não pode intervir sem ser descoberto. A impotência que sente ao testemunhar a selvageria cometida contra sua mulher o leva à loucura.

Na esteira da escravidão, os linchamentos se multiplicaram. Nas décadas seguintes houve alguns casos notáveis de resistência negra contra a violência racial, mas essa resistência geralmente era derrotada, e boa parte das imagens e artefatos que sobrevivem desse período dizem respeito às vítimas da violência.

O movimento dos direitos civis combateria a violência com a não violência, chamando a atenção para a crueldade e depravação dos racistas sulistas, mas a tática produziu mais um volume de imagens de vitimação negra –espancamentos, mangueiras de incêndio usadas contra negros, turbas intimidando participantes de protestos sentados em lanchonetes contra a exclusão de clientes negros.

Esse tema americano recorrente continuou até o presente, incluindo o espancamento de Rodney King em Los Angeles, o estrangulamento de Eric Garner em Nova York e o assassinato de George Floyd em Minneapolis, todos captados em vídeo.

Darnella Frazier, que tinha 17 anos quando gravou com seu celular o vídeo de Derek Chauvin com o joelho sobre o pescoço de George Floyd, depôs no julgamento do policial, dizendo que já tinha passado "muitas noites acordada pedindo desculpas a George Floyd por não ter feito mais e não ter interferido fisicamente para salvar a vida dele".

Charles McMillian, que tinha 61 anos na época do julgamento e também assistiu à vitimação de Floyd, começou a chorar quando foi ao banco das testemunhas. Ele depôs entre lágrimas, dizendo "não pude deixar de me sentir impotente".

Ao longo de tudo isso, especialmente dos vídeos visualizados interminavelmente, outras pessoas negras experimentaram um trauma em segunda mão que só foi intensificado pelos sentimentos de vulnerabilidade decorrentes de não poder intervir –de sentir que também elas poderiam ter sido essas vítimas e que ninguém poderia ou teria vindo socorrê-las.

O que aconteceu em Montgomery formou um contraste com muito disso.

Ali, a indignação justa de uma comunidade encontrou vazão quando pessoas negras vieram defender um homem negro que estava sendo atacado. Para muitos que viram o que ocorreu, foi um momento terapêutico que lhes deu a sensação de a história estar sendo corrigida.

Para acrescentar mais um toque de poesia histórica, a briga coletiva ocorreu no Alabama, com sua história hedionda de escravidão e do infame sistema de arrendamento de presidiários, que Douglas A. Blackmon caracterizou como "escravidão sob outro nome" em seu livro ganhador do Prêmio Pulitzer.

Aconteceu em uma doca fluvial onde pessoas escravizadas de ascendência africana eram transportadas para ser vendidas em uma cidade que anos depois, com o boicote aos ônibus de Montgomery, desempenharia um papel crucial no movimento dos direitos civis.

Embora a violência nunca seja o ideal, a autodefesa possui um apelo e justificativa moralmente universal. E chega um momento em que a defesa é a única opção, em que ficar de cabeça erguida é a única postura apropriada. Descrevendo o que aconteceu neste caso, até mesmo o chefe de polícia de Montgomery destacou que membros da tripulação do barco fluvial "vieram em defesa do Sr. Pickett".

Esperemos e oremos para que mais situações não se deteriorem em violência como foi nesse caso e que a civilidade sempre prevaleça. Mas devemos entender também que nenhum povo é obrigado a suportar violência sem se defender ou ser defendido.

Tradução de Clara Allain 

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