Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

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Conrado Hübner Mendes

Big techs não se movem por sua liberdade

Controlar plataformas é medida mais urgente de regeneração democrática

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Plataformas digitais turbinam convulsões políticas há quase dez anos. Os efeitos colaterais dessa revolução comunicativa já estão desenhados, a alucinação coletiva já televisionada, as mortes contadas, a violência extremista alastrada. Seu lobby milionário já corrompeu a competição eleitoral e a civilidade pública. Nunca se viu isso na história da democracia.

Geraram expectativas de libertação individual e aproximação coletiva. Sem limites no seu modelo algorítmico de engajamento, facilitaram também manipulação, dominação e radicalização. Seus potenciais emancipatórios foram ofuscados e superados por sua capacidade de alienar, lucrar e engendrar o caos.

"Caos" não é cacoete hiperbólico, mas conceito invocado em dois influentes livros sobre o tema ("Os Engenheiros do Caos", de Giuliano Da Empoli, e "A Máquina do Caos", de Max Fisher). Não são máquinas passivas usadas por agentes malignos da conspiração. A promoção da conspiração está embutida na sua própria arquitetura, que promove e premia conteúdo que atiça o fígado. Como medo e ódio. Sem falar em efeitos mais profundos.

Grupo usa celulares e tablets - Farknot Architect/Adobe Stock

Muitos virão lembrar que as causas do caos são "mais complexas". O apelo à complexidade do mundo, porém, é tão correto quanto trivial. Serve para problematizar toda tentativa de decifrar relações de causa e efeito. E faz perder de vista a simplicidade objetiva de certos dispositivos causais que operam para agravar um problema "mais complexo". Não subestime essa ponta do iceberg.

A versão mais crua desse erro diz que a "culpa" não é das big techs, mas dos maus usuários. O argumento remete à "National Rifles Association", nobre entidade americana com poder de bloquear toda tentativa de controlar disseminação de armas de fogo naquele país. A cada novo atentado, a NRA tenta ensinar que a maldade está no atirador, não nas armas. E fanáticos continuam, por exemplo, a assassinar em escolas.

Outros virão alertar que mentira sempre existiu na política. Ignoram que a inquietação atual não emergiu de uma tardia descoberta do óbvio, mas da inédita tecnologia que segmenta destinatários a partir de perfis psicológicos e distribui conteúdo customizado de modo torrencial e permanente.

Não são megafones na praça pública, onde o mentiroso merece o seu cantinho. São disparadores massivos e inteligentes, que determinam quem escuta o quê e quando.

Alguns ainda virão gritar pela liberdade de expressão. Abaixo a censura. Sentem-se como Chico Buarque impedido por censores de lançar uma canção na ditadura.

São porta-vozes anacrônicos de John Stuart Mill, que há 200 anos formulou famoso argumento pela liberdade de expressão: que os discursos devem correr soltos para que, no confronto com a mentira, a verdade vença e permaneça viva.

Mill não conheceu nem a tecnologia do rádio, mas já ressaltava que certos danos podem justificar restrições a liberdades. Essa parte fica escondida nos debates recentes. Os millions ainda emprestam de George Orwell a imagem amedrontadora de "ministério da verdade" para bagunçar mais o debate. E parecem não notar que algoritmos já censuram e discriminam. Sem critério público.

Já sabemos que, sem reação política e jurídica competente, conquistas modestas e provisórias da vida em comum vão submergir. A competição política disciplinada por regras jurídicas compartilhadas, onde derrotados respeitam o resultado e sabem que podem continuar a jogar, não sobreviverá sem regras a tecnologias tão poderosas de desestabilização e concentração de riqueza.

O Parlamento brasileiro está atrasado enquanto gira o relógio do apocalipse democrático. Uma lei sobre fake news precisa lidar com vários assuntos intrincados: definição de desinformação, atribuição de responsabilidades pelos ilícitos, supostos efeitos sobre a liberdade religiosa e a imunidade parlamentar, criação de autoridade reguladora independente e com capacidade técnica. Voltarei a isso adiante.

Sem uma boa lei, a ameaça existencial vai permanecer. O STF está sozinho atuando no escuro regulatório. Para o bem e para o mal. Esse improviso institucional já expirou sua data de validade.

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