Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e Liberdade - SBPC

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Conrado Hübner Mendes
Descrição de chapéu Folhajus

Respeitem a aflição de José, um quase-desembargador paulista

A magistocracia bandeirante não quer discriminar juízas, apenas priorizar juízes

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O Tribunal de Justiça de São Paulo tem 354 desembargadores. São 314 homens e 40 mulheres. Entre desembargadores homens, 39 Josés, 30 Luízes, 29 Antonios, 10 Fernandos, 9 Joões. As mulheres competem, de verdade mesmo, contra Josés e Luízes. Vencem pelo placar apertado de 40 a 39 a 30. Fernandos e Joões não têm se esforçado o suficiente.

Mulheres perdem no STF. Lá, os quatro Luízes de hoje (sem contar outros nove do passado) superam as únicas três ministras em 130 anos de história do tribunal. Há também quatro Luízes no STJ. Ali as seis ministras vencem. Vencem os Luízes no colegiado de 33 membros, 27 homens.

Sessão plenária do STF. 08/02/2023 Sessão plenária do STF.  Ministra Rosa Weber preside a sessão plenária.  Local: Plenário do STF.  Fotografia:
Ministra Rosa Weber em sessão plenária do STF - Carlos Moura - 8.fev.23/Divulgação STF

Já se explicou que esse abismo de gênero nas instâncias superiores decorre de discriminação. Não só da chamada discriminação direta, produto de gesto concreto, de ato identificável e individualizável que pretere arbitrariamente uma mulher.

Pode ser produto de discriminação indireta e institucional. Onde a discriminação é difusa, irredutível a um ato. Está embutida nas regras, nas estruturas, nas práticas. Ao final dos filtros de progressão da carreira, as mulheres são barradas de maneira grosseiramente desproporcional. Apesar de regras aparentemente imparciais. E nem começamos a falar da discriminação racial.

O discriminador nem sempre é visível, mas a discriminação segue lá. Essa evolução conceitual no direito da antidiscriminação foi incorporada por nossa ordem jurídica.

O Conselho Nacional de Justiça, sob liderança de Rosa Weber, tenta agora regular a promoção de juízes a tribunais por critérios de paridade de gênero. Uma proposta de resolução, informada por pareceres e análises empíricas sobre perfil demográfico do judiciário, está na pauta do CNJ.

O TJ-SP discorda. Soltou uma breve "nota técnica" onde esboça um argumento jurídico (a regra tem "vício de inconstitucionalidade"); um argumento factual ("nunca houve discriminação de gênero", a disparidade se dá "por força da evolução histórica de nossa sociedade"); e um argumento meio moral, meio imoral, meio sem noção ("inequívoca a aflição daquele que poderá ter o sonho... sensivelmente mais distante").

Grupos privilegiados (públicos e privados) costumam ficar aflitos quando a engrenagem de privilégios ameaça ser desmontada. Mas podiam caprichar mais no discurso em vez de investir todas as forças no corpo a corpo da baixa política.

A alegação de inconstitucionalidade precisa demonstrar que programas de ação afirmativa não são válidos no Judiciário e que o CNJ não tem competência para regular as promoções por antiguidade e merecimento; a afirmação de que nunca houve discriminação rejeita o conceito de discriminação indireta, e coloca o tribunal na era pré-constitucional do direito à igualdade; quanto à aflição dos quase-desembargadores, melhor mudar de assunto porque daí não sai bom argumento de justiça.

A deliberação do CNJ começou e a conselheira relatora Salise Sanchotene votou pela sua aprovação, seguida por dois votos favoráveis. Um juiz paulista, membro do CNJ, pediu vista do caso e suspendeu o julgamento. Como já se antecipava. O pedido de vista se tornou um mecanismo de obstrução individual a julgamento colegiado. Espera-se que, em respeito à instituição do CNJ e à aposentadoria de Rosa Weber, o julgamento retorne rápido.

O TJ-SP não é o único tribunal a discriminar. Desembargadoras têm ocupado entre 20% e 25% das cadeiras de tribunais do país. Mas o TJ-SP convida a galhofa quando sua presidência busca defender os vícios do tribunal em público.

Se o quase-desembargador paulista, que estava quase lá por antiguidade, merecimento e masculinidade, tiver que aguardar mais para a promoção, ainda resta o consolo do poeta:

E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, a magistocracia traiu, e agora, José? Está sem promoção, está sem discurso, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir como desembargador já não pode, não veio a utopia da cadeira de tribunal na hora esperada, e tudo acabou, e agora, José? Se você gritasse, se você gemesse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José!

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.