Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Um brinde aos 200 anos do autor de 'Crime e Castigo'

Russo legítimo, Dostoiévski bebia vodca com um pedaço de pão para começar o dia

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É difícil imaginar Dostoiévski, com seus 200 anos recém-completados, segurando um coquetel. Sua figura hirsuta, sisuda, atormentada, definitivamente não combina com a graciosidade frívola de uma taça de cristal. Mas, como bom russo, ele era adepto das bebidas alcoólicas —de preferência algo forte, calcado nas tradições ou possibilidades do povo.

De acordo com um seu contemporâneo, bebia vodca de produção caseira, feita à base de trigo, no café da manhã. Punha um pedaço de pão na boca, tomava um gole e mastigava tudo junto. Dizia que esse era o melhor jeito de consumir a aguardente nacional.

Há muitas crenças a esse respeito na Rússia, que perduram até hoje. Um médico, por exemplo, pode dizer a seu paciente que é melhor não consumir álcool, a não ser, em caso de extrema necessidade, a vodca. A suposta pureza da bebida é um argumento. O que pode ser uma benção e uma maldição.

Retrato do escritor Dostoievski, pelo pintor russo Vassily Perov
Retrato do escritor Dostoiévski, pelo pintor russo Vasily Perov - Reprodução

O folclórico alcoolismo eslavo já foi uma realidade em números. Até o começo dos anos 2000 bebia-se na Rússia algo em torno do dobro da média mundial. Restrições foram tomadas e essa estatística caiu 40%. A bebedeira pitoresca dos mujiques e soldados bravateiros ficou limitada a filmes e livros antigos.

"Crime e Castigo", uma das obras máximas de Dostoiévski, nasceu como um projeto sobre os males do álcool. Chamaria-se "Os Bêbados". O escritor, que frequentemente inspirava-se em crônicas policiais, queria traçar um retrato fiel da miséria provocada pela mardita. Sem dispensar os aspectos psicológicos, seu forte.

O personagem Marmeládov é resquício dessa tentativa. Secundário em "Crime e Castigo", mas com ressonância que vibra até as últimas páginas, ele é um dos interlocutores de Raskólnikov antes do crime. Sônia, a filha do ébrio, é uma prostituta-santa, que vende o corpo para alimentar os irmãos pequenos.

A compaixão, dirá o bêbado ao jovem delirante, perdeu espaço para a economia política, em voga na Inglaterra. Tudo são números. Ciência e compaixão, claro, devem andar de mãos dadas, mas é preciso combinar com os russos —e ingleses. O contraste do sofrimento daquela família com o sumo egoísmo da velha agiota era demais para Raskólnikov. A compaixão vinha primeiro. E a vodca de carona.

Dostoiévski pensava no ser humano, em toda sua bela e abjeta complexidade. Essa era sua matéria prima. Quando melancólico, bebia vinho, e talvez ruminasse sobre os destinos de personagens das páginas dos jornais e fictícios, sem contar a própria situação, um correr permanente de credores.

Tomador compulsivo de chá preto, gostava também de um conhaque antes da sobremesa, quem sabe como um comentário intenso antes do diálogo ameno com os doces. Seu vício era mesmo o jogo e a escrita, que saía aos borbotões por necessidade financeira.

Houve, em momentos na história russa, tentativas de estabelecer uma lei seca. Como na Grande Guerra e na Revolução de 1917. Mas o hábito não se perde com a proibição —antes se intensifica. Muitos criaram sua própria bebida em alambiques capengas. Eram as samogon, que no mundo anglófono chamam de moonshine, o destilado caseiro.

Em "Os Irmãos Karamázov" há um porre épico antes de um crime. Às vezes a grandeza literária está em tornar algo prazeroso numa tragédia. Que o digam Freud e Nietzsche, que beberam muito dali. Um brinde a Dostoiévski, sem crime, nem castigo. Com uma pura. Ou quase.

VODCATINI

Ingredientes

  • 75 ml de vodca
  • 7 ml de vermute seco

Passo a passo
Bata com gelo e sirva numa taça martini gelada

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