O futuro é preto e branco, reino da melancolia. O cenário é uma doceria, onde a feitura de sonhos se desdobra em planos elaborados, numa edição que Eisenstein aprovaria.
A câmera se aproxima de nosso herói. De cabeça baixa, notamos a careca, antes disfarçada, em dias mais gloriosos. Quando ergue o rosto, aparece um bigode inédito. Um sujeito avança até ele, mal-encarado. Sua expressão, contida, ainda assim grita: será que ele me reconheceu?
Nós espectadores, sim. Ele é Jimmy McGill, aka Saul Goodman, ex-advogado de bandidos pés rapados a grandes cartéis de drogas, Walter White incluso, o rei da metanfetamina pura.
Assim começa "Better Call Saul", um spin-off por vezes melhor que a obra-prima original, "Breaking Bad". A cena seguinte é de terror existencial, na forma de programa de proteção à testemunha. Depois de atravessar o shopping com as luzes apagadas, ele, um triste arremedo da antiga figura exuberante, Beto Rockefeller contemporâneo, que usava gravatas tão cafonas e exóticas quanto seus clientes, volta para casa, uma caverna do pesadelo americano.
Prepara um drinque que já foi chamado (injustamente) de "coquetel para velhos deprimidos". É o rusty nail, nada mais do que scotch e Drambuie, um licor à base de uísque. Como o dry martini, o segredo está na proporção dos ingredientes, que varia ao gosto do freguês.
Copo na mão, Jimmy liga a TV. Nada que preste. Então fecha as persianas e pega uma fita VHS escondida. São os comerciais de sua adorável persona picareta, quando o mundo era mais divertido —e colorido. Em silêncio, só quebrado pelo choque dos gelos, sua expressão agora sussurra: eu era feliz.
Bob Odenkirk, o ator genial que ficou marcado pelo personagem, faz 60 anos neste dia 22. Foi roteirista de programas cômicos como "Saturday Night Live", pelo qual ganhou um Emmy. A vida de ator, também premiado, é mais recente. Teria começado num momento de crise?
Em "Better Call Saul", ele tem vários desses momentos. Um dos mais marcantes é quando resolve deixar a advocacia para aplicar pequenos golpes. Sua parceira, a certinha Kim Wexler (Rhea Seehorn) entra na barca, feliz de sair um pouco do modelito apertado do tailleur corporativo.
Uma tomada de cima mostra ele largadão na piscina, com um drinque vermelho acoplado à boia (um singapore sling?), chamando Kim ao celular. Ela chega e eles vão ao bar, onde pedem doses de tequila Zafiro Añejo, mas desistem por causa do preço exorbitante.
Então ele percebe um falastrão contando vantagens sobre seu talento para ganhar dinheiro na bolsa. Pra quê. Os dois jogam a isca e o beócio os convida para discutir o assunto numa mesa ao lado. O combustível da conversa é, claro, a preciosa Zafiro Añejo. Quem paga o pato, uma garrafa azul inteira, com uma tampa que mais parece saída de um perfume Givenchy, é o bravateiro, espécime evidente da turma dos imbrocháveis.
Essa tequila foi uma invenção dos roteiristas. Ela aparece em vários momentos da série, especialmente entre os traficantes mexicanos. É um instrumento diplomático e símbolo de riqueza e poder. Tem, como se verá, parentesco com o vinho dos Bórgia. Mas e o rusty nail? Diz-se que Sinatra e seus amigos (Sammy Davis Jr., Lauren Bacal e Dean Martin, entre outros), eram devotos da mistura. Não destoariam na fauna do escritório de Saul Goodman. Ligariam para ele?
RUSTY NAIL
- 60 ml de scotch
- 15 ml de Drambuie
Passo a passo
Mexa suavemente num copo old-fashioned com gelo. E decore com uma casca de laranja.
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