Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Gelo e gim

No balcão com João Antônio, mestre da boemia sem frescura

O genial contista João Antônio iria detestar essa coluna

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O genial contista João Antônio iria detestar essa coluna, nos temas e, talvez, na forma. Adepto das palavras roladas no chão das ruas, embebidas na fritura do torresmo ou encharcadas de conhaque de alcatrão, ele torceria o nariz para os fru-frus da coquetelaria, "misturações safadas, fricotado, flozô." Argumentaria que "metem água, afrescalham, enfiam vodca, melam a cachaça com açúcar." E tudo isso para se bebericar em taças de salto alto, um despautério.

Mais ainda, incomodava a ele a hipocrisia elegante dos coquetéis —aqui no sentido de recepção social— em vernissages, lançamentos de ocasião, palácios de governo e, principalmente, chez quatrocentões, bonifrates e gente famosa, onde é preciso "paciência astuta". Sangue não é água, talvez pensasse, bordão de minha tia (muito querida). E muito menos gim com vermute, azeitona inclusa.

Se os folguedos da alta ocupavam parte dos anos 1970 com "armação de campanhas, cinismos e mordomias", Ray Conniff e bossa nova diluída, ou a "gemedeira irritante das musiquinhas que andam pelo rádio", eram os sambas sincopados de Germano Mathias e os versos inspiradores de Noel Rosa que embalavam seus contos, tão musicais, e suas andanças, com o repique das bolas de sinuca ao fundo, e o chamado quente e cansado das moças da vida, nos quarteirões da Boca do Lixo.

O escritor João Antônio (1937-1996) durante uma partida de sinuca
O escritor João Antônio durante uma partida de sinuca - Divulgação/Arquivo pessoal

De resto, eu daria mil caixas de Caracu para debater essas questões com ele, deixar as ideias girarem num fumo etílico entre os polos da autenticidade e da afetação, da cachaça proletária e do Hennessy das embaixadas. Chamaria o compay Xico Sá, escriba luminoso, amplo conhecedor das boêmias encantadas e desencantadas, para desfazer esse nó górdio da existência alcoólica. E então me sentiria um impostor, evidente.

Em minha defesa, diria que já fui consumidor exclusivo do rabo de galo, do tremoço com limão espremido e das tais cervejas pretas (às vezes com ovo), cujas tampinhas tinham "uma cabeça de bovino ou muar", quando a arte com o taco, de mestre Bacanaço, era a única atividade respeitável para um farrista classe A, além de alguns rasgos de valentia, sempre mínimos, só para constar, e de um bom posto entre rendas íntimas.

As ressacas homéricas, odisseias de agonia, faziam parte. Lembro das tantas vezes que segurei a cabeça como se fosse uma granada sem o pino e que coloquei para fora as tripas até as raspas do inconsciente, diante da placidez indiferente da porcelana.

O músico Noel Rosa
O músico Noel Rosa - Reprodução

Lembro também dos momentos de esbórnia, uma alegria tão intensa, coisa de subir na fórmica do bar e fazer discurso ou emular, brincando, Vicente Celestino. Coisa de abraços e beijos, em número igual aos goles de caipirinha, de dançar com a timidez guardada no bolso, junto com o último cigarro, e ultrapassar o primeiro turno dos passarinhos para depois sair chutando tampinhas no caminho, já engatilhado na melancolia.

Nesse debate imaginário, cachaças com carqueja adentro e o som ao redor da batucada em latas de graxa —panelaço lúdico contra a barbárie—, eu tomaria coragem e insistiria: pô, João Antônio, deixa de frescura, desabraça esse rancor e vamos tomar um dry martini estupidamente gelado. Ao nosso lado, talvez, um nordestino presciente levantasse "a mão em que segura uma costeleta de porco", e anunciasse: "Essa é a bandeira da paz!" Chocando os copos, diríamos: amém.

PULO DO GATO

  • 60 ml de cachaça
  • 20 ml de vermute seco
  • uma espirrada de limão

Passo a passo
Mexer os ingredientes e coar para com copo com gelo, decorando com uma casca de limão.

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