Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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Demétrio Magnoli

Inocente útil

Aqui, como nos EUA, trata-se de despertar uma multidão de ressentidos, politizando a amargura no liquidificador das redes sociais

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"A História está sendo feita diante de teus olhos! Quando os teus netos perguntarem onde você estava quando...aconteceu, qual será a tua resposta?", escreveu Stephen Ayres numa postagem no Facebook em 2 de janeiro de 2021. Ayres estava no Capitólio invadido quatro dias depois, quando "aconteceu". Ele dirá a seus netos o que acabou de dizer ao comitê parlamentar de investigação: fui iludido pelas mentiras de um líder político sem escrúpulos ou limites.

A conspiração de Donald Trump para anular o veredito das urnas começou antes mesmo do triunfo eleitoral que o conduziu à Casa Branca, em 2016, por meio de incessantes referências à hipótese de fraude no sistema de voto. Espalhe a suspeita no labirinto das redes sociais, mesmo sem um pingo de evidências – eis a receita do golpista pós-moderno. Sempre haverá uma minoria disponível para funcionar como massa de manobra.

Policiais tentam conter apoiadores de Trump que se dirigiam ao Capitólio, em cena antes da invasão do prédio do Congresso americano em janeiro de 2021 - Olivier Douliery-06.jan.21/AFP

Numa reunião caótica com assessores, em dezembro de 2020, dias após a certificação da vitória de Biden pelo Colégio Eleitoral, Trump ensaiou editar uma Ordem Executiva de confisco de urnas eletrônicas pelo governo federal. O gesto catastrófico foi bloqueado pela rejeição do advogado-geral, William Barr. Naquela madrugada, o presidente tuitou a convocação da manifestação de 6 de janeiro que culminaria com a invasão do Capitólio: "Esteja lá! Será selvagem!". Ayres ouviu o chamado da "História", tomou sua decisão e não parou mais de postar.

A invasão do Capitólio foi articulada entre assessores de Trump e lideranças de milícias extremistas e organizações do supremacismo branco. Ayres, residente em Ohio, nunca envolveu-se com tais círculos – e nem sequer era filiado a algum partido. No seu depoimento, definiu-se como "um homem de família e um trabalhador". A tragédia americana encontra nele um retrato: a base de Trump é constituída por milhões de brancos da baixa classe média que, consumidos por incontáveis fracassos profissionais e pessoais, agarram-se a uma ilusão redentora.

"Eu seguia Trump em todos os sites. Eu era muito radical nas redes sociais." Geralmente, militantes organizados, como muitos que invadiram o Capitólio, resistem aos reveses, conservando sua fidelidade ideológica na hora do infortúnio. O grupo, que é sua sociedade, oferece-lhes reconhecimento e até alguma fama. Ayres, Zé Ninguém, viu-se desamparado diante das implicações judiciais de seus atos. Preso e processado, perdeu o emprego e teve que vender sua casa para custear advogados. Agora, feitas as contas, junta-se a tantos outros na conclusão de que Trump arruinou suas vidas – mas não a vida dele próprio.

Bolsonaro copia, passo a passo, o roteiro golpista escrito por Trump, começando pela difusão da suspeita sobre a integridade do sistema eleitoral. Como seu ídolo, o ocupante do Planalto aposta numa minoria fiel embriagada pela ideia de que o rumo da "História" depende de uma heroica ação de massas. Aqui, como lá, trata-se de despertar uma multidão de ressentidos, politizando a amargura no liquidificador das redes sociais.

O paralelo é imperfeito. No seu plano frustrado de confiscar urnas, Trump teria que passar por cima da autoridade dos estados. Bolsonaro, por seu lado, precisará violar as prerrogativas do TSE, que é presidido por ministro do STF. O projeto golpista de Trump lastreava-se numa densa rede de organizações extremistas cujas raízes estendem-se pelo solo do supremacismo branco. No Brasil, Bolsonaro só conta com milícias políticas insignificantes – mas rega a semente da anarquia entre generais de pijama, nos quartéis e nas forças policiais.

O enredo principal, porém, é o mesmo. Bolsonaro, como Trump, precisa do inocente útil: o "homem de família" corroído pelo ressentimento que, sozinho diante de uma tela, rende-se à força hipnótica de litanias de mentiras. Sem Ayres, o golpe morre no berço.

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