Desigualdades

Editada por Maria Brant, jornalista, mestre em direitos humanos pela LSE e doutora em relações internacionais pela USP, e por Renata Boulos, coordenadora-executiva da rede ABCD (Ação Brasileira de Combate às Desigualdades), a coluna examina as várias desigualdades que afetam o Brasil e as políticas que as fazem persistir

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Desigualdades

Cracolândia não pode mais servir para alimentar máquina eleitoral

Políticas ineficazes precisam dar lugar a teto, trampo e tratamento

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rodrigo Faria G. Iacovini

Doutor em planejamento urbano e regional pela FAU-USP, é coordenador do Instituto Pólis

Cracolândia: um estigma que se alimenta da combinação perversa de sujeitos vulnerabilizados e de um território há mais de um século em disputa. A situação já é conhecida até mesmo fora dos limites municipal e estadual. Contudo, o que se ouve a seu respeito geralmente é a perspectiva do Estado e de agentes que insistem em tratá-la sob a pecha de problema social e dificilmente a voz dos seus próprios moradores e frequentadores.

Se no Rio de Janeiro, as operações policiais em favelas servem de vitrine da gestão pública perante às classes médias e altas, ainda que impactem violentamente a vida de dezenas de milhares de moradores desses territórios, em São Paulo a truculência na cracolândia cumpre esse mesmo papel. Aqui, é exercida em nome da fracassada guerra às drogas, cujos impactos nefastos recaem principalmente sobre corpos negros, que, em vez de cidadãos com direito à voz ativa no desenho e implementação de políticas, são tratados como objetos da política. Essa população tem sido instrumentalizada para a construção de diferentes narrativas, que buscam legitimar iniciativas higienistas na região central, da Nova Luz à atualmente famigerada Esplanada do Tarcísio.

Mas nem mesmo do ponto de vista econômico os exemplos acima podem ser considerados políticas eficientes. Estudo sobre o custo das políticas de drogas na cracolândia, realizado pela Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas, conclui, por exemplo, que a "insistência na política bélico-repressiva de drogas tem gerado um custo político, social e econômico altíssimo".

Moradores, frequentadores, coletivos, ativistas e organizações que atuam na área apontam em análises e em mobilizações: a solução é "teto, trampo e tratamento".

Evidências científicas e dados baseados nos resultados de programas públicos já implementados em outros países e até mesmo aqui, tais como o De Braços Abertos, demonstram que, em muitos casos, os usuários não são pessoas que posteriormente passaram a viver em situação de rua, mas sim pessoas em situação de rua que se tornaram usuários como estratégia de sobrevivência, para aliviar o sofrimento diante da violência cotidiana a que estão submetidos nas ruas. Quando se promove o acesso à moradia e ao trabalho, de forma a que possam conduzir seu tratamento com liberdade e dignidade, é observada uma mudança significativa no comportamento dos participantes dos programas.

As ações públicas municipais e estaduais em São Paulo têm ido, no entanto, na contramão dessas evidências. Além de promover a dispersão de usuários brutalmente, por meio de ação policial desastrosa, e de oferecer programas que não fortalecem seu protagonismo no próprio tratamento, iniciativas como o cercamento de praças e de ambientes que servem de abrigo a essa população, a retirada de barracas e o recolhimento de pertences e o fechamento de restaurantes populares apenas aprofundam a crise humanitária vivida pela população em situação de rua e podem reforçar esse ciclo.

Visam simplesmente deslocar o verdadeiro problema —o aumento da população de rua vivendo em extrema pobreza na cidade, hoje estimada em mais de 52 mil pessoas—, sem de fato lhes oferecer políticas de habitação, assistência social e saúde adequadas.

Em vez de retirar recursos da habitação e alocá-los em uma operação tapa-buraco, a Prefeitura de São Paulo deveria investir esses milhões já disponíveis e parados nos cofres públicos para enfrentar a situação vivida por essa população. Em lugar de demolir e desapropriar para construir uma nova e desnecessária esplanada, o governo estadual poderia ampliar a oferta de comida nos restaurantes populares.

Infelizmente, tais decisões não são discutidas com as pessoas que vivem esse cotidiano e cuja cidadania existe apenas no papel. Suas vidas continuarão em xeque, servindo para alimentar manchetes e a máquina política paulistana.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.