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No trânsito e sem casa

Prefeitura de SP quer transferir verbas de mobilidade e habitação para asfalto

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O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), enviou para a Câmara Municipal um projeto de lei que desobriga o investimento de 30% em habitação de interesse social e outros 30% em mobilidade urbana dos valores arrecadados do Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb).

Tais parâmetros, contudo, foram estabelecidos por meio do Plano Diretor da cidade. Para se ter uma ideia dos valores, o Fundurb tem arrecadado cerca de R$ 1 bilhão por ano (se considerarmos o período 2021-22). Ou seja, se essa lei for aprovada, a cidade —que sabidamente sofre com severos problemas de mobilidade e habitação— poderá deixar de investir nessas áreas cerca de R$ 600 milhões por ano. Os valores desvinculados passariam a ser investidos em recapeamento de vias.

Moradores de rua dormem em frente ao Pateo do Colégio, no centro de São Paulo - Danilo Verpa - 10.fev.23/Folhapress

O montante não é nada desprezível. Em dez anos, totalizaria mais de R$ 6 bilhões, recursos capazes de, por exemplo, viabilizar a construção de 400 km de ciclovias, 200 km de faixas exclusivas e 40 km de corredores de ônibus. Além disso, permitiria regularizar, urbanizar e reformar 20 mil domicílios em favelas e construir 10 mil novas habitações de interesse social, destinadas para quem mais precisa —famílias com renda de até três salários mínimos.

Mas há ainda um outro agravante. Historicamente, os investimentos realizados pelo Fundurb são predominantemente destinados a promover melhorias urbanísticas nas periferias. Tal medida contribui para tornar a cidade menos desigual e mais resiliente. É importante registrar que esses territórios são justamente os mais suscetíveis aos impactos das mudanças climáticas e onde vive, majoritariamente, a população negra.

Mas qual seria o motivo para a prefeitura propor a desvinculação desses gastos? Falta de recursos? Não é o caso. Hoje a cidade possui, no caixa geral, cerca de R$ 35 bilhões livres, apenas para promover investimentos. As razões parecem ser outras.

Destacamos duas delas. A primeira é a decisão de priorizar o recapeamento de vias em contraposição a outras intervenções com caráter estruturante, contrariando as prioridades do Plano Diretor. Em 2019, outra lei, também apresentada pelo Executivo, flexibilizou os critérios, permitindo que recursos do fundo fossem investidos em obras viárias. O resultado é um alerta ao atual projeto, cuja tramitação foi suspensa em liminar concedida pela Justiça na semana passada: a iniciativa foi considerada inconstitucional e, no período de sua vigência, entre 2019 e 2021, os investimentos em mobilidade sustentável perderam espaço de forma significativa.

A segunda razão se refere ao cálculo eleitoral. A pouco mais de um ano das eleições, a prefeitura, sem que se saiba de estudos técnicos e financeiros sobre necessidade, critérios de priorização e impactos das medidas, tem priorizado ações rodoviaristas —apesar do caixa cheio. O asfaltamento de vias pode criar uma sensação imediata de que algo está sendo feito, retirando recursos de problemas emergenciais e de maior relevância para a metrópole.

Não será, por exemplo, com asfalto que resolveremos problemas como a população vivendo em situação de rua. São cerca de 52 mil pessoas sob tal condição, conforme registrou pesquisa realizada pela UFMG.

A dramática situação do centro da capital tampouco será endereçada em sua complexidade quando as prioridades de recurso são as vias para transporte individual motorizado.

Há, por fim, um último elemento que não pode ser desprezado. A proposta não foi discutida em nenhuma instância de participação social durante sua tramitação no Executivo —nem mesmo antes da primeira votação na Câmara. Isso afronta o princípio da gestão democrática estabelecido no Estatuto da Cidade e no Plano Diretor, que poderá ser objeto de questionamento quanto à legalidade. Além disso, tal projeto corre em paralelo ao conturbado processo de revisão intermediária das diretrizes urbanísticas.

Diante das emergências sociais e climáticas e das crescentes desigualdades de São Paulo, perguntamos: é isso mesmo que a cidade quer? Investir em um modelo rodoviarista que significa mais tempo no trânsito e sem casa para morar? Retirando recursos de políticas públicas fundamentais, especialmente para as periferias?

Esperamos que a Justiça mantenha a suspensão da tramitação do projeto e, caso contrário, que os vereadores possam avaliar a questão com bastante cautela antes de levá-la à segunda e última votação.

Fernando Túlio
Pesquisador do programa de excelência do governo suíço na ETH de Zurique e diretor do Instituto ZeroCem

Gabriela Alves
Cientista social e diretora de participação social do Perifa Sustentável

Bianca Tavolari
Professora do Insper e pesquisadora do Cebrap e do Mecila

Edilson Mineiro
Especialista em direito urbanístico e assessor jurídico da União dos Movimentos de Moradia (UMM-SP)

TENDÊNCIAS / DEBATES
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