Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Criança proibida de fazer aborto em SC após estupro expõe crueldade da Justiça

Diante de violações graves como essa, que não são raras no Brasil, é preciso ir além de cobranças individuais

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Em Santa Catarina, no fórum da cidade de Tijucas, uma criança de 11 anos de idade foi exposta a uma aviltante audiência presidida por uma magistrada que negou o seu direito ao aborto legal, posto que a menina engravidou mediante estupro. A gravação do ocorrido, em que diversas falas revoltantes da juíza foram proferidas, tornou-se de conhecimento público a partir de uma reportagem do site The Intercept e do portal Catarinas.

Dirigindo-se à criança, a juíza proferiu uma série de frases de conteúdo moral. Entre as que mais chocaram estão as perguntas que fez para a criança vítima —"você suportaria ficar mais um pouquinho [com a gravidez]?" e também "você acha que o pai do bebê [referindo-se ao estuprador] concordaria com a entrega para a adoção?".

Na ilustração de fundo azul claro, há um banco laranja e nele uma menina sentada, cabisbaixa, abraçando um ursinho de pelúcia. Sua pele é negra, de pele clara, ela tem cabelos castanhos escuros, usa uma saia blusa rosa clara e uma saia de tom rosa mais escuro, o ursinho é bege com detalhes nas patas e no rosto em marrom claro
Ilustração publicada em 23 de junho - Linoca Souza

Além disso, a criança foi retirada do convívio com a mãe e enviada durante esse período crítico para um abrigo. Um dos argumentos para essa decisão é que a mãe poderia vir a levá-la ao procedimento do aborto legal. Até que a decisão fosse revertida, e mãe e filha pudessem ficar juntas novamente, mais de um mês se passou de isolamento da criança. Uma crueldade.

O mais triste é perceber como episódios se repetem no país, pois não há como se esquecer do caso de dois anos atrás no Espírito Santo, em que foi divulgada a identidade de uma menina negra de dez anos engravidada por um tio e que buscou o aborto legal. Seu nome foi exposto por uma militante de extrema direita e uma ministra de Estado moveu o aparato público para fazer um inferno em sua vida.

Voltando a Santa Catarina, não demorou, contudo, para pessoas da comunidade jurídica apontarem problemas na interpretação e conduta da julgadora e da representante do Ministério Público. Foram apontadas violações ao Estatuto da Criança e do Adolescente, uma vez que a audiência ocorreu de forma a intimidar uma criança que, por lei, deveria ter uma oitiva especializada.

A retirada da criança do convívio com sua mãe também fere sua dignidade, uma vez que sua mãe é a representante legal que estava a lutar pelo direito garantido em lei à sua filha. Tanto a criança quanto a mãe foram caladas na busca por seus direitos, merecendo toda a solidariedade contra o arbítrio perpetrado.

No que se refere ao aborto, ele é um direito em casos específicos, e a lei não discrimina semanas para tanto. Fora isso, a gravidez de uma criança, por si só, já é de altíssimo risco, pois nessa idade a estrutura biológica não está pronta para suportá-la, sendo necessária a intervenção médica independentemente das semanas de gestação. O caso revoltou, com razão, diversas pessoas que o acompanharam pela mídia.

Contudo, quero problematizar os riscos de pessoalizarmos a revolta na conduta de uma só magistrada, não vendo isso como um problema estrutural.

Devemos lembrar que, no Brasil, conforme dados do Ministério da Saúde, 17.316 meninas de 14 anos foram mães em 2021. Ainda, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, mais de 60 mil crianças foram estupradas em 2020, dado subnotificado por uma série de razões.

Ou seja, meu ponto é: cobrar do Conselho Nacional de Justiça, órgão que deveria ser responsável pela fiscalização procedimental de todo o Judiciário, uma punição à juíza é importante e necessário, porém insuficiente.

Casos que envolvem crianças e adolescentes são sigilosos, havendo como consequência uma menor fiscalização da sociedade civil quanto aos rumos de demandas dessa natureza.

São dependemos das estruturas internas do próprio Estado para que se faça valer o direito ao aborto legal, sobretudo quando os casos vão ao Judiciário. Logo, o órgão fiscalizador do poder deve ser cobrado para que melhore, e muito, na proteção à criança e ao adolescente, devendo responder à sociedade algumas questões diante desse caso.

Por exemplo, quantas varas e equipes psicossociais especializadas no acolhimento de crianças e adolescentes vítimas de abuso estão em funcionamento? Qual a estrutura oferecida a elas? Qual a fiscalização acerca das medidas judiciais que tratem de vítima e seus abusadores? Qual é o plano de expansão do atendimento especializado às crianças e às mulheres?

Quais são os processos de formação interdisciplinar de agentes do sistema de Justiça, dos cargos administrativos até o gabinete da juíza e do juiz, que são fornecidos? Qual acompanhamento é feito junto a seus quadros para reciclagem e como têm sido os processos administrativos em face de pessoas desqualificadas para o cargo?

Como já afirmei nesta Folha sobre estupros no país, para não ficarmos reféns da gritaria devemos sempre romper à tentação de cobranças individuais a problemas do Brasil todo.

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