Ezra Klein

Colunista do New York Times, fundou o site Vox, do qual foi diretor de Redação e repórter especial

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Por que o estilo de vida da classe média permanece fora do alcance de tantos?

Inflação desmascarou profundezas de nossa crise de acessibilidade

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The New York Times

Os dados da inflação em junho nos EUA são surpreendentes: 9,1%, a maior taxa anual desde 1981.

Talvez seja a mais alta que teremos. Os preços do petróleo e de outras commodities estão caindo, o crescimento dos salários tornou-se negativo e os estoques de varejo estão aumentando. Nada disso é solo fértil para inflação persistente. Se o único problema de preços que tivemos fosse o que os relatórios de inflação do ano passado registraram, eu pensaria que a luz estava começando a surgir no túnel.

Homem empurra carrinho de mercado em Manhattan, nos EUA - Andrew Kelly - 28.mar.22/Reuters

Mas não está. Em fevereiro de 2020, a revista The Atlantic publicou um artigo sobre a crise de acessibilidade que estava azedando uma economia aparentemente forte. "Numa das melhores décadas que a economia americana já registrou, famílias foram sangradas por senhorios, administradores de hospitais, tesoureiros de universidades e creches", escreveu Annie Lowrey. "Para milhões, uma economia em expansão parecia precária ou terrível." Essa visão ficou na minha mente nos últimos dois anos.

Não acho que se possa entender a crise de preços mais ampla sem ela. (Devo mencionar aqui que Lowrey e eu somos casados, mas não use isso contra ela —ou seu trabalho!). Os números são surpreendentes. O preço médio das casas em 1950 era 2,2 vezes a renda média anual; em 2020, seis vezes. Os custos com cuidados infantis cresceram cerca de 2.000% –sim, você leu direito– entre 1972 e 2007.

Os prêmios familiares de seguros de saúde com base no empregador aumentaram 47% entre 2011 e 2021, e os custos dedutíveis e pagos à vista dispararam quase 70%. O preço médio dos medicamentos de marca no Medicare Part D aumentou 236% entre 2009 e 2018. Entre 1980 e 2018, o custo médio de uma educação universitária básica subiu 169%. Eu poderia continuar... ​

Encobrimos a crise de acessibilidade com preços baixos de bens de consumo, valores crescentes de ativos que mantinham felizes os americanos mais ricos, subsídios para alguns cidadãos em determinados momentos e montanhas de dívidas: dívidas habitacionais e médicas e empréstimos estudantis que mantinham a classe trabalhadora semiafogada. Mas nada disso tratou do problema principal. Há muito tempo os preços das coisas de que mais precisamos vêm crescendo mais rapidamente que a inflação.

E assim surgiu uma economia estranha, na qual um estilo de vida seguro de classe média retrocedeu para muitos, mas as armadilhas materiais do sucesso da classe média tornaram-se acessíveis para a maioria. Na década de 1960, era possível cursar uma faculdade de quatro anos sem dívidas, mas impossível comprar uma televisão de tela plana. Na década de 2020, a realidade estava próxima do inverso.

A crise de acessibilidade dá certo sentido às últimas décadas de nossos debates econômicos: uma crise de dívida habitacional, um novo programa enorme para subsidiar custos de seguro-saúde, debates sobre tornar a faculdade gratuita e perdoar empréstimos estudantis, várias propostas de que o governo pague creche e pré-escola, uma bolha em criptomoedas que atraiu tantos investidores em parte porque parecia um elevador para a riqueza que qualquer um poderia usar.

Mas agora os preços dos ativos estão despencando. O custo dos empréstimos está subindo. O preço dos bens de consumo e a energia necessária para produzi-los e acessá-los dispararam. O Congresso está ficando mais mesquinho. Os preços continuam altos, mas as políticas e os paliativos que usávamos para disfarçá-los estão desmoronando. (Felizmente, a Lei de Acesso à Saúde permanece, e estremeço só de pensar o quanto esses anos seriam piores sem ela.)

O problema dos preços está espreitando há anos, mas nunca foi o cerne de nossa política. Agora é. Está nas placas de postos de gasolina e no supermercado. Está em contratos de aluguel e cheques de mensalidades estudantis. Mesmo que a inflação total caia, não acho que deixaremos tão cedo de ver o alto preço de uma vida de classe média. O partido político que dominará esta próxima era será aquele que compartilhar a fúria do público e colocar os preços no centro de sua agenda.

Há alguns vislumbres de como isso pode ser. A Nova Coalizão Democrata, composta por 99 deputados moderados, lançou recentemente um pacote de propostas de políticas destinadas a combater a inflação. Mas grande parte dele é voltada para a crise de acessibilidade que antecede o aumento da inflação. Inclui legislação que usaria verbas federais de transporte para pressionar cidades e estados a facilitar a construção de moradias, que aliviaria a escassez de trabalhadores aumentando a imigração legal e que limitaria os custos de insulina e permitiria que o Medicare negociasse mais preços de medicamentos.

Se os progressistas olharem, não encontrarão muitas ideias para baixar os preços em toda a economia. "Há anos eu me preocupo com essas coisas", disse Dean Baker, um dos fundadores do Centro de Pesquisas Econômicas e Políticas, uma instituição progressista. "Não podemos simplesmente aceitar os mercados como estruturados e depois usar a política de impostos e subsídios para aliviar a situação. Um grande problema real com os progressistas é que tratamos os problemas do mercado como fatos consumados, em vez de reestruturar esses mercados."

O antigo argumento de Baker é que a divisão entre mercado e governo é hoje, e sempre foi, falsa. "A ideia de um mercado livre é um absurdo", disse ele. "Me diverti muito com os libertários que dizem querer o governo fora dos mercados. E eu digo: 'Ah, você não quer mais ter corporações?' São entidades jurídicas."

Há muito tempo aprecio as opiniões de Baker por dois motivos. Primeiro, elas aplicam princípios econômicos básicos de forma justa, o que raramente é verdade na política. Ele é implacável ao usar argumentos frequentemente usados contra a intervenção do governo em benefício dos pobres para criticar as intervenções atuais que beneficiam os ricos. Em segundo lugar, elas cortam o pântano ideológico de mercados versus governos para fazer a pergunta mais fundamental: nossos mercados são estruturados para servir a quem?

Siga análises como essa e você encontrará uma série de maus atores, em todas as linhas partidárias e profissionais. A construção de moradias é tão difícil em cidades densas principalmente porque os governos dificultam a construção. Esses governos são desproporcionalmente dirigidos por democratas.

"Os lugares azuis (democratas) optaram por tornar sua oferta de moradias inelástica –para usar a linguagem econômica–, e os lugares vermelhos (republicanos), em geral, permitiram que os mercados imobiliários continuassem funcionando e que a oferta respondesse quando há um aumento de demanda", disse Jenny Schuetz, autora de "Fixer-Upper: How to Repair America’s Broken Housing Systems" (reformas: como consertar os sistemas habitacionais defeituosos da América).

Mas os preços dos medicamentos estão altos porque os republicanos apoiam amplas proteções de patentes, mas não permitem que o governo use seu poder de compra para negociar preços, que é como quase todos os outros países ricos mantêm os custos baixos. Estamos concedendo monopólios de um lado e nos recusando a usar o poder de compra do outro. O programa Warp Speed para o desenvolvimento de vacinas foi um exemplo de como poderia ser feito de outra forma: o governo se tornou o comprador das vacinas e as distribuiu gratuitamente.

E que tal a concorrência pública para produtos sem patente? O governador da Califórnia, Gavin Newsom, democrata, acaba de anunciar que o estado reservou US$ 100 milhões para começar a fabricar sua própria insulina de baixo custo. Se funcionar, poderá se tornar um modelo nacional.

As crises de inflação nos EUA tendem a ser impulsionadas, ou agravadas, por nossa exposição aos petroestados. Isso vale para o embargo da Opep nos anos 1970 e para o que o governo Biden gosta de chamar de "o aumento de preço do Putin" de 2022. Como observou Mark Zandi, economista-chefe da Moody's Analytics, o aumento dos preços dos combustíveis foi responsável por mais da metade da inflação de junho. Ela provavelmente vai diminuir.

Mas um mundo onde a maior parte da energia dos EUA fosse gerada por usinas eólicas, solares, nucleares e geotérmicas é um mundo onde seríamos muito menos dependentes das flutuações do mercado global de energia. (E, embora pareça quase ridículo ter que dizer isso, um mundo de crise climática descontrolada também não será bom para os preços; as boas razões para descarbonizar são infindáveis.)

Há décadas estamos numa política de gastos. As perguntas eram sobre quanto gastar e no que gastar. Estamos entrando numa política que parece semelhante na superfície, mas é diferente: uma política de preços. Quanto gastar e para onde direcionar esses gastos ainda é importante. Mas estará subordinado a um objetivo maior: reduzir os preços em toda a economia. E será um trabalho para anos, talvez décadas.​

Traduzido por  Luiz Roberto M. Gonçalves

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