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Ezra Klein

EUA estão virando as costas às famílias mais pobres

Programa de crédito fiscal infantil deu certo, mas ficou de fora de pacote social; há esperança de ressuscitá-lo

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Ezra Klein

É colunista de opinião do jornal The New York Times. Antes, fundou o grupo de mídia digital Vox e foi colunista e editor do Washington Post.

The New York Times

"Dissemos que não aceitaríamos os níveis de pobreza infantil que tínhamos como um fator permanente de nossa democracia", me contou o senador democrata Michael Bennet. "Não só o mundo não acabou como as famílias com quem conversei —que gastaram o dinheiro com tudo, de uniforme escolar a bicicleta— tiveram a tensão reduzida. Foi essa a palavra que elas usaram. Livraram-se de um peso arrasador."

Bennet falava da melhor política pública adotada na era de Joe Biden, que ele próprio ajudou a traçar: a ampliação do crédito fiscal infantil. A medida deu US$ 3.000 (R$ 14 mil) aos pais a cada filho na faixa dos 6 aos 17 anos e US$ 3.600 (R$ 16,7 mil) por filho com até 6 anos.

Voluntários distribuem comida na Organização Conselho dos Povos, em Nova York
Voluntários distribuem comida na Organização Conselho dos Povos, em Nova York - Spencer Platt - 1º.abr.22/Getty Images/AFP

Era uma ajuda incondicional, apenas dinheiro. Podia ser usado para pagar a creche, alimentação, roupa, qualquer coisa. A medida tratava os pais, mesmo os pobres, como especialistas nas finanças da família —uma ideia discretamente radical na política social americana. Foi um experimento enorme, estudado exaustivamente, e agora podemos declarar: funcionou.

Um estudo da Universidade Columbia concluiu que a política reduziu a pobreza infantil em mais de 25%, elevando 3,4 milhões de crianças para acima da linha de pobreza, não obstante a pandemia galopante. Dados do Censo mostram que o número de pais que disseram que seus filhos não tinham o suficiente para comer caiu em mais de 3 milhões.

Conservadores alertaram que o benefício desencorajaria os pais de trabalharem, mas economistas observaram com atenção, e não há evidências de que isso tenha acontecido. Os pobres, como os ricos, querem viver com mais de US$ 3.000 (R$ 14 mil) por filho por ano.

Os gastos de famílias que receberam o incentivo foram rastreados e estudados porque os americanos nutrem uma desconfiança profunda de que, se você der dinheiro a pobres, elas o gastarão com luxos e bebida. Mas, entre as famílias de baixa renda, mais de 90% do dinheiro foi gasto com alimentação, água e eletricidade, roupas ou educação.

Para pessoas que têm dificuldade para pagar suas contas, não existe luxo tão grande quanto poder se preocupar um pouco menos com dinheiro. Que eu saiba, foi a primeira política pública a viralizar no TikTok: pessoas dançando, rindo, felizes porque ficou mais fácil pagar o aluguel ou levar o carro à oficina.

Tudo isso foram dados relativos a apenas dois meses. A verdadeira influência de ajuda financeira desse tipo se manifesta ao longo do tempo. Outra pesquisa, também de Columbia, analisa uma série de estudos sobre benefícios dos pagamentos em dinheiro para famílias com crianças pequenas. A conclusão: um benefício de US$ 3.000 (R$ 14 mil) por criança se pagaria dez vezes.

Esses programas trazem rendimentos mais altos a longo prazo, aproveitamento educacional mais alto, peso natal maior, mortalidade neonatal mais baixa, saúde física e mental melhor na idade adulta. Resultam em menos criminalidade, receita tributária mais alta, expectativa de vida mais longa.

"Funcionou", diz Bennet. "Por isso é tão difícil entender a situação em que nos encontramos agora."

A situação: a ampliação do incentivo fiscal acabou. O Plano Americano de Resgate alocou o dinheiro extra por um ano. A teoria era que a política seria bem recebida e o Congresso não a deixaria acabar. Mas a teoria estava errada, o projeto morreu e não há esperança imediata de ressurreição. Mais uma vez, aceitamos os níveis de pobreza infantil pré-pandemia como traço permanente da nossa democracia.

E assim o maior sucesso da administração Biden se converteu, por ora, num fracasso político. O que deu errado? Como a política pode ser resgatada ou, pelo menos, como o fracasso pode não se repetir? Venho fazendo essas perguntas a políticos, analistas e ativistas. Algumas teorias se destacam. Uma é que os democratas erraram quando deixaram a medida expirar após um ano —não foi tempo suficiente para criar as expectativas necessárias para a pressão política com a qual contavam.

"Políticas públicas podem passar a integrar nossa visão do que um governo deveria fazer", me disse Jamila Michener, cientista política da Universidade Cornell. "Os casos clássicos são a Previdência Social e o Medicare. Mas muita coisa precisa acontecer para que esses efeitos deitem raízes. É preciso que as pessoas saibam de onde vem o benefício, quem precisa dele, e então serem motivadas —organizadas para responder de uma maneira política."

Isso remete a um problema mais amplo dos democratas, que foi a simples confusão sobre o que era a política e de onde estava vindo. Foi uma desvantagem de aprovar a política como parte de um pacote de estímulo maior.

A luta em torno do Obamacare, que dominou a política americana em 2009 e 2010, deixou claro que, quer você gostasse da lei ou a odiasse, os responsáveis por ela eram os democratas. Mas não houve uma discussão enorme sobre pobreza infantil que culminou na política promulgada por eles.

O plano Build Back Better (BBB) proposto por Biden teria estendido o crédito fiscal infantil, mas também propunha fazer dezenas de outras coisas. Fazia sentido como estratégia legislativa, mas tornou praticamente impossível transmitir a mensagem desejada.

Ser contra ou a favor do BBB não significava ser contra ou a favor do crédito fiscal infantil, das políticas climáticas e para educação na primeira infância, da ampliação do Obamacare, das modificações nos impostos sobre empresas ou de qualquer das outras dezenas de pontos do pacote. Se havia algo que o definia, na mente do público, era seu preço inicial: US$ 3,5 trilhões (R$ 16, 3 trilhões).

Isso não representou um erro inexplicável de comunicação. É consequência de um Senado falido que hoje realiza a maior parte de seu trabalho por meio do processo bizarro de reconciliação orçamentária. Dois desses problemas atingiram o BBB. Primeiro, antes de redigir um projeto do tipo, é preciso definir qual será seu custo. "Você inicia a discussão no ponto errado", me disse Sharon Parrott, presidente do Centro de Prioridades Orçamentárias e Políticas.

Em segundo lugar, pelo fato de só ser possível aprovar um ou dois textos assim por ano, é preciso incluir neles tudo que você receia que o outro lado vai tentar barrar. Já é difícil conseguir que eleitores prestem atenção à discussão de uma questão e cobrar seus parlamentares sobre ela. Conseguir que eles acompanhem a discussão de 6 ou 12, todas metidas num só saco legislativo, é impossível. Essa é mais uma maneira pela qual a obstrução legislativa deixou o governo mais confuso e menos responsável.

Há também o fator Joe Manchin e Kyrsten Sinema. Se os democratas tivessem ganhado as eleições para o Senado na Carolina do Norte e no Maine, o Build Back Better talvez tivesse sido aprovado. Mas, com a Casa dividida igualmente, 50 a 50, democratas precisam estar totalmente unidos para aprovar qualquer coisa sem votos republicanos —e eles não estão. O voto de Manchin, da Virgínia Ocidental, em especial, era crucial, e os democratas o perderam.

Se poderiam ter conseguido o apoio dele é algo que não posso responder de modo convincente.

Mas aqueles que negociaram com Manchin dizem que ele achava o crédito fiscal infantil especialmente problemático. Na visão dele, o incentivo daria dinheiro demais a pessoas pobres que não estavam trabalhando, incentivando-as a permanecer desempregadas ou a abandonar seu emprego, se o tivessem. Bennet disse, frustrado: "Mostrei a ele as evidências de que países com crédito infantil maior têm taxas de participação na força de trabalho mais altas que os EUA, mas não consegui persuadi-lo".

Não devemos perder de vista o cerne moral. Há maneiras de facilitar o trabalho de pais pobres ou, se for preciso, fazer com que seja mais difícil para eles permanecerem desempregados. Condenar as crianças à pobreza não deve ser uma delas. "Existe essa questão fundamental de quando, como país, vamos enxergar a humanidade em cada criança", diz Parrott. "É inaceitável deixarmos crianças vivendo em pobreza profunda porque não confiamos em seus pais ou queremos castigá-los."

E a inflação não é razão para deixarmos crianças vivendo na pobreza. Estender o crédito fiscal ampliado custaria cerca de US$ 100 bilhões (R$ 465,3 bilhões) por ano —menos que 0,5% do PIB dos Estados Unidos. E isso poderia facilmente ser instaurado em conjunto com políticas que elevassem impostos ou reduzissem gastos em outros setores, anulando o impacto final sobre os gastos.

A história ainda não acabou. Ainda há esperança de que alguma parte dos investimentos do BBB possam ser ressuscitados, entre eles um crédito fiscal infantil menor —grandes empresas fazem lobby pela extensão de um incentivo fiscal para pesquisas que poderia integrar um pacote com esse crédito.

O senador republicano Mitt Romney tem um ótimo plano e, embora até agora não tenha encontrado muitos aliados no partido, a esperança é a última que morre. E quem sabe Manchin acorde um belo dia e decida aceitar um acordo. Reverter cortes de impostos feitos por Trump, algo a que ele diz ser a favor, levantaria mais de US$ 1,5 trilhão (R$ 7 trilhões).

Manchin quer reservar metade desse montante para a redução do déficit —ótimo. O restante poderia ser dividido entre investimentos no clima e um crédito fiscal infantil permanente, algo que custaria menos que o definido no Plano Americano de Resgate, que não acabaria completamente até a pessoa alcançar US$ 150 mil (R$ 698 mil) de receita familiar.

Eis minha interpretação otimista, se bem que eu não ande muito otimista. Um crédito fiscal dessas dimensões teria sido impensável na política americana uma década atrás. Mas em 2021 estava sendo proposto por moderados como Bennet e republicanos como Romney, e os democratas o aprovaram na primeira oportunidade que tiveram.

Desde então, os argumentos a favor dele só se fortaleceram: vimos que funcionou muito bem, quantas pessoas ajudou. Pode ser reativado ou não, mas por ora permanece firme na área do que é politicamente possível. O crédito fiscal infantil ampliado deixou claro algo que sempre soubemos: que tanta pobreza infantil em um país tão rico quanto o nosso é uma escolha política —abominável.

"Acho que isso vai virar política fiscal permanente algum dia", diz Bennet. Digo o mesmo. E torço para que esse dia chegue muito em breve.

Tradução de Clara Allain 

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