Ross Douthat

Colunista do New York Times, é autor de 'To Change the Church: Pope Francis and the Future of Catholicism' e ex-editor na revista The Atlantic

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Descrição de chapéu The New York Times

O que a direita faz quando as grandes empresas se voltam contra o conservadorismo?

Assim como discurso de Elizabeth Warren, ideias podem circular e às vezes reaparecer no último lugar onde você esperaria

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The New York Times

Em 2011, quando Elizabeth Warren estava se preparando para concorrer a uma vaga no Senado americano, ela fez um longo discurso em que apresentou os argumentos contra um certo tipo de visão Ayn Randiana idealizada do heroico capitalista solitário.

Num vídeo que viralizou, disse: "Não existe ninguém neste país que enriqueceu sozinho. Você construiu uma fábrica? Fez muito bem. Mas quero deixar claro: você transportou suas mercadorias até o mercado por rodovias pelas quais o resto de nós pagou. Contratou operários que o resto de nós pagou para educar. Ficou em segurança graças a forças policiais e bombeiros pagas pelo resto de nós".

Ela elogiou seu hipotético empresário rico: "Veja, você construiu uma fábrica e ela virou uma coisa fantástica, ou uma grande ideia, graças a Deus". Mas argumentou que os empresários devem algo ao sistema em troca —algo que, na visão dela, significava uma alíquota tributária mais alta.

O governador da Flórida, o republicano Ron DeSantis, discursa durante fórum conservador realizado em Orlando
O governador da Flórida, o republicano Ron DeSantis, discursa durante fórum conservador realizado em Orlando - Joe Raedle - 24.fev.22/Getty Images/AFP

Esse argumento foi ecoado mais tarde por Barack Obama em sua frase fatídica "você não construiu isso" –que, note bem, Warren não disse originalmente—, que, por sua vez, deu lugar a "você construiu isso!" como tema importante da malfadada candidatura presidencial pró-empreendedorismo de Mitt Romney.

Na discussão Romney-Obama, a linha que separa os dois partidos parecia consistente, já fartamente conhecida: você buscava entre os democratas versões do argumento de Warren de que nenhuma empresa de sucesso é construída sem algum tipo de apoio do Estado e procurava os republicanos para encontrar uma visão mais heroica, baseada na visão individualista do sucesso da América corporativa.

Nada tem sido igualmente consistente desde então. O Partido Republicano na era de Trump continuou a ser majoritariamente pró-empresas, mas sua base e seu discurso ficaram mais de classe trabalhadora e populistas, enquanto muitos republicanos seguidores de Romney entraram na coalizão democrata.

Enquanto isso, o Partido Democrata continua a ser, de modo geral, o partido da regulamentação e da tributação mais alta, mas boa parte da América corporativa se bandeou culturalmente para o campo liberal. Esse processo já estava bem encaminhado uma década atrás, mas tem sido acelerado pela reação anti-Trump, pelos engajamentos mais de esquerda dos clientes mais jovens das grandes empresas e, especialmente, por seus funcionários mais jovens, além da relativa facilidade com que a linguagem de tom radical da política identitária pode ser assimilada a técnicas de gestão corporativa.

Assim, o Partido Republicano atual é mais claramente o partido do capitalismo local –dos pequenos empresários, das empresas familiares, o que os esquerdistas gostam de chamar de "capitalismo patrimonial"—, enquanto a relação do partido com a América corporativa está cada vez mais complexa.

Boa parte da elite republicana deseja continuar a fazer negócios com as grandes empresas, como antes. Mas a base do partido encara as instituições corporativas –especialmente as do Vale do Silício, mas chegando também às forças capitalistas mais tradicionais— como inimigos culturais, dotados de poder consolidado em excesso e interessados demais em fazer pressão, exercer censura e fazer propaganda contra visões e políticas públicas socialmente conservadoras.

Essa tensão na direita produziu poucas inovações em matéria de políticas públicas –um interesse repentino da direita por quebra de monopólios, algumas incursões vagamente favoráveis aos sindicatos— e muita incoerência. Mas na semana passada assistimos a duas respostas conservadoras mais pontuais à pergunta: o que faz a direita quando as grandes empresas se voltam contra o conservadorismo?

Uma resposta é a solução de Elon Musk: você espera até um bilionário libertário (ou talvez, realmente, um bilionário com a visão política de um liberal de dez anos atrás –mas, ei, os conservadores têm mais é que aceitar o que lhes é oferecido) comprar uma das empresas cujo misto de influência e censura você teme.

Você torce para ele passar por cima dos profissionais da empresa, em sua maioria progressistas, e mudar as regras de moderação para deixá-las mais favoráveis a conteúdos de direita, ou ao menos não tão propensas a censurar relatos incômodos sobre, digamos, o filho de um candidato presidencial democrata.

E você pega os argumentos que os progressistas estavam apresentando apenas ontem sobre políticas de moderação de redes sociais –se vocês não gostaram, vão montar sua própria rede social, seus perdedores!— e as atira de volta na cara deles.

O que o próprio Elon Musk pode realmente querer fazer com o Twitter é assunto para outra coluna. Basta dizer que ele teria que fazer muito para que seu modelo de bilionário salvador se tornasse uma resposta real ao distanciamento geral entre o conservadorismo e as grandes empresas.

E isso nos conduz à segunda resposta, a solução de Ron DeSantis, expressa na guerra recente do governador da Flórida contra a Disney. Você diz às grandes empresas que, se elas decidirem se tornar ativas no lado liberal das guerras culturais (ou se forem pressionadas internamente para isso), podem ver seus acordos especiais e suas exceções corporativas ameaçados ou revogados de repente.

Desde uma perspectiva, isso não é mais factível que a solução de Musk, porque uma iniciativa tão direta quanto a de DeSantis é muito possivelmente anticonstitucional, um ataque aos direitos de liberdade de expressão corporativa. E o próprio governador da Flórida pode esperar que sua iniciativa seja derrubada na Justiça, isso para ele poder auferir os benefícios políticos dela sem precisar de fato lidar com as consequências de algo que, francamente, parece uma mudança de política muito mal pensada.

Mas existe um argumento conservador em favor do princípio do que DeSantis está fazendo: um argumento de que, embora o governo não tenha o direito de prejudicar você especificamente por seu discurso político, o que está sendo revogado, no caso da Disney, é o favorecimento especial que a empresa goza há anos na Flórida, ligada a seu posicionamento bipartidário ou mesmo suprapartidário.

É interessante que esse argumento parece uma reformulação do argumento feito por Warren uma década atrás, só que agora vinda da direita cultural. Não com a mesma conclusão em termos de políticas públicas, é claro, mas com premissa semelhante. Warren argumentou que ninguém constrói uma empresa sozinho. Agora os conservadores estão aderindo a uma variante desse argumento –não para justificar a tributação progressiva, mas para sugerir que, se sua empresa ou instituição aceita favores especiais do governo, o público vira parte interessada em seu sucesso e tem o direito de deixar de lhe dar esse tratamento especial se você se tornar um ator partidário ou ideológico.

O escritor conservador Ben Domenech argumentou na semana passada: "Quase todas as instituições que a esquerda controla e que ela vem usando como arma nas guerras culturais foram criadas por todos os americanos e dependem de tratamento favorável especial, até de financiamento, deles".

Essa observação se aplica a entidades públicas, escolas e universidades públicas, que atraem tanta polêmica no momento, mas também se aplica aos gigantes da internet, beneficiários de um sistema regulador que em grande medida os imunizou da responsabilidade por seus conteúdos (por meio da famosa Seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações). Aplica-se às firmas de Wall Street resgatadas em 2008. Aplica-se às ligas esportivas que dependem de isenções antimonopolistas e subsídios a seus estádios. E aplica-se à Disney –porque, como escreve Domenech, "foi só graças à generosidade do povo" que ela pôde ser bem-sucedida em suas décadas de lobby para estender as proteções de direitos autorais.

Esse argumento sugere que todas essas instituições gozam das proteções contra discriminação dadas pela Primeira Emenda. Mas as formas de discriminação que funcionam a favor delas –ou seja, todos seus privilégios, suas imunidades e seus incentivos fiscais— são alvos políticos justos se as instituições adentrarem a arena das guerras culturais.

"A política econômica dos EUA não é neutra em relação às empresas, em qualquer sentido puro, Adam Smithiano", escreve Domenech. "Ela é uma gigantesca e complexa rede de tratamentos especiais dados a interesses especiais. Assim, quando elites que comandam esses interesses especiais lançam uma cruzada moral farisaica contra o mesmo povo americano que as beneficiou com tratamento especial [...], esse público insultado, abusado, tem todo o direito de revogar parte de sua beneficência."

Não sei se esse argumento é constitucionalmente convincente quando aplicado a algo que parece tão toscamente retaliatório quanto a iniciativa de DeSantis. Mas é convincente, vista desde alguma distância.

Por exemplo, quando a administração Trump fez aprovar um imposto sobre a a receita que faculdades e universidades ricas recebem de doações, não foi, evidentemente, uma medida desinteressada: o objetivo era reduzir o tratamento especial oferecido a essas instituições, precisamente porque nos últimos anos elas têm ficado cada vez mais radicalizadas contra o conservadorismo.

Foi um ato político, um ato punitivo, uma versão do que Domenech descreve: vocês recebem dólares tributários de conservadores, além de liberais, de modo que não podem se queixar quando a direita nota que vocês não parecem contratar docentes conservadores e decide reaver alguns desses dólares tributários. E, embora alguns tenham dito que essa intenção tornou a medida anticonstitucional, poucas figuras legais teriam levado essas alegações muito a sério.

Do mesmo modo, se a incipiente aliança esquerda-direita contra o Big Tech algum dia levar a uma lei antitrustes real, essa legislação claramente será motivada por um desejo conservador de punir os gigantes de tecnologia por determinadas transgressões muito comentadas. Parece pouco provável, contudo, que essas motivações –misturadas a outras, é claro— acabem virando argumentos para os tribunais bloquearem, por exemplo, uma divisão do Facebook em partes ou uma revogação da Seção 230.

Assim, embora os detalhes específicos da aposta em relação à Disney possam não ser confirmados ou reproduzidos, a ideia por trás dela provavelmente vai continuar viva, moldando ambições conservadoras nos níveis estaduais e federal (especialmente porque, como vimos com as guerras da rede de fast food Chick-fil-A, os liberais se dispõem a usar as mesmas táticas quando a oportunidade para isso se apresenta, embora a debilidade cultural da direita signifique que há menos oportunidades notáveis).

Dada a natureza caótica do conservadorismo hoje, o mais provável é que essas apostas anticorporativas sejam em muitos casos mais táticas que estratégicas, mais frequentemente simbólicas que transformativas, e que com frequência igual não passem de gestos feitos para aplacar a base do partido, cética em relação às empresas, mas que deixam os relacionamentos clientelistas intactos nos bastidores.

Mas ainda é uma evolução surpreendente o fato de que a direita, que no passado desdenhou um relato de sucesso empresarial na linha do "fomos nós que construímos tudo isso", agora tenda a adotar sua própria versão desse argumento. E, embora eu não preveja que Warren se diga justificada de qualquer maneira, é uma prova de que as ideias podem circular e às vezes reaparecer no último lugar onde você esperaria.

Tradução de Clara Allain

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