Ezra Klein

Colunista do New York Times, fundou o site Vox, do qual foi diretor de Redação e repórter especial

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Liberalismo tende a agravar discrepâncias entre projetos públicos e privados

Modelo é mais adepto a ver onde governo poderia gastar mais do que a determinar como gastar melhor

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The New York Times

Em fevereiro deste ano fui conhecer o Tahanan, um edifício que pode ser a resposta para a crise dos sem-teto em San Francisco. Saí de lá desejando que a resposta tivesse sido outra.

Situado no número 833 da Bryant Street, o Tahanan tem 145 quitinetes. É um prédio eficiente e alegre que ostenta esperanças e marcas da população à qual se destina. Os detalhes arquitetônicos e murais cuidadosamente escolhidos convivem com danos extensos provocados por infiltração provocada quando um morador de um andar superior teria dormido com as torneiras abertas. Assistentes sociais percorrem os corredores, cumprimentando moradores, e muitas pessoas saem para levar cachorros para passear.

Homem vasculha cesto de lixo em São Francisco, nos Estados Unidos
Homem vasculha cesto de lixo em São Francisco, nos Estados Unidos - Jim Wilson - 7.abr.2019/The New York Times

Mas o que torna o Tahanan notável não é sua estética, é o modo em que foi construído. O edifício foi completado em três anos e custou menos de US$ 400 mil por unidade. Os conjuntos habitacionais de preços acessíveis na região metropolitana de San Francisco geralmente levam o dobro do tempo para ser construídos, a quase o dobro do custo. No ritmo e ao custo em que está construindo unidades habitacionais acessíveis hoje, San Francisco não vai conseguir reduzir sua crise habitacional, mas se a rapidez de construção e o preço do Tahanan fossem a regra, as perspectivas seriam mais animadoras.

Então como isso foi conseguido com o Tahanan? A resposta é um pouco deprimente para liberais: os responsáveis enganaram o governo. Mas o termo "governo" é enganoso neste contexto. O governo raramente é uma entidade única que busca apenas um objetivo. O Tahanan deu certo graças ao apoio de autoridades municipais e estaduais que aceleraram o zoneamento e fecharam acordos para viabilizar sua construção. Mas precisou de grandes somas de dinheiro privado para evitar desencadear uma avalanche de normas e padrões bem-intencionados que atrasam projetos públicos em todo o país.

Poderíamos supor que quando o governo se vê diante de um problema de importância pública maior, ele usa seu poder para varrer os obstáculos que estão no caminho. Muitas vezes, porém, ele faz o contrário. Ele acrescenta metas –muitas delas louváveis—, e, com isso, soma obstáculos, despesas e atrasos. Se conseguir realizar tudo, terá realizado muito mais. Mas muitas vezes ele tenta realizar tanta coisa com um único projeto ou política que acaba não concretizando nada.

Eu encaro isso como o problema do liberalismo do tipo "bagel com tudo". Os "bagels com tudo", ou seja, com todas as coberturas, são os melhores, é claro. Mas quando se acrescenta demais, o projeto vira um buraco negro do qual nada consegue escapar. E um problema que os liberais estão enfrentando em todos os lugares onde governam é que eles muitas vezes acrescentam demais. Vale destacar que conservadores não resistem à tentação de acumular procedimentos e restrições, mas frequentemente o fazem em um esforço intencional de levar o governo a funcionar mal, de modo que fracasso e ineficiência se convertem numa espécie de sucesso.

O Tahanan inicialmente não estava numa zona que comportava conjuntos habitacionais acessíveis. A construção só pode começar graças a uma lei apresentada pelo senador Scott Wiener em 2017 que concedeu status de "fast track" a tipos específicos de projetos habitacionais acessíveis na Califórnia.

Mas um alvará desse tipo significa apenas que pode-se iniciar o processo de construção. Quando você constrói habitação de preço acessível, geralmente usa verbas públicas. Para usar verbas públicas é preciso cumprir requisitos públicos. É o caso de uma portaria que surgiu em 1984 como preferência para empreiteiras pertencentes a mulheres ou membros de minorias étnicas. Mas em 1996 a Califórnia aprovou a Proposta 209, segundo a qual "o Estado não discriminará nem dará tratamento preferencial a qualquer indivíduo ou grupo com base em sua raça, sexo, cor, etnia ou origem nacional na operação de emprego público, educação pública ou obras públicas contratadas".

Assim, os requisitos foram reescritos para atender às pequenas empresas, com receita anual média abaixo de US$ 7 milhões. Isso cria alguns problemas. Um deles é que os projetos de construção habitacional pública em San Francisco são por definição desencorajados de trabalhar com grandes construtoras, que são bem-sucedidas precisamente porque conseguem entregar obras prontas dentro do prazo e do orçamento. Outro problema é que a cidade tem um mercado de mão de obra apertado e um mercado de construção ainda mais apertado. Não há muitas empreiteiras pequenas e eficientes ociosas. Na prática, algumas pequenas empreiteiras acabam se responsabilizando por grande número de obras habitacionais acessíveis, provocando atrasos e custos que excedem os orçamentos.

O Tahanan é o primeiro conjunto habitacional acessível em San Francisco construído com unidades modulares. Todas as unidades acima do térreo foram feitas numa fábrica em Vallejo, na Califórnia, mais baratas e prontas mais rápido. Mas alguns sindicatos locais ficaram furiosos, apesar de os trabalhadores da fábrica de Vallejo também serem sindicalizados. Então esse é mais um ponto de conflito entre metas progressistas. Empregos sindicalizados locais são uma boa coisa. Habitação modular pode baratear e acelerar a construção em um Estado que sofre de um déficit habitacional agudo. Qual você escolhe?

O que possibilitou o Tahanan foi uma doação de US$ 50 milhões da Fundação Charles e Helen Schwab. As condições foram que a obra teria que ficar pronta em três anos e custar US$ 400 mil por unidade. Com o uso de dinheiro privado, o projeto conseguiu contornar requisitos de verbas públicas. Não significa que autoridades de San Francisco fossem contra o projeto, mas o dinheiro privado foi o molho secreto.

Achei esse fato desanimador. Não há dinheiro privado suficiente disponível para resolver a crise habitacional. Mas, em um nível mais profundo, é muito desanimador saber que é possível construir habitação acessível tão mais rapidamente e economicamente abrindo mão de verba pública. O governo precisa ser capaz de resolver os grandes problemas. Mas a incapacidade ou falta de disposição de optar entre prioridades concorrentes –de acumular coberturas demais em cima do bagel— é por si só uma escolha, e uma escolha que a Califórnia tem feito repetidamente. Mas o problema não se limita ao estado.

Pensei no Tahanan quando, no final de fevereiro, a administração Biden lançou seu aviso de oportunidade de financiamento para a Lei CHIPS e Ciência. O elemento central dessa lei, aprovada por ambos os partidos, é um montante de US$ 39 bilhões para subsidiar firmas de semicondutores para a construção de fábricas na América.

Vale a pena tirar um momento aqui para descrever o problema que a administração Biden está tentando resolver e por que está tentando resolvê-lo. "Dizem muitas vezes que dados são o novo petróleo", escreveu Chris Miller em "Chip War". "Mas a verdadeira limitação que enfrentamos não é a disponibilidade de dados e sim o poder de processamento."

O poder de processamento vem de semicondutores. E os semicondutores estão em toda parte. Estão em carros, máquinas de lavar louça, iPhones, mísseis guiados, brinquedos infantis e sistemas de inteligência artificial. São a tecnologia mais complexa criada pelos humanos.

Pouquíssimas empresas são capazes de produzir esses chips. "Diferentemente do petróleo, que pode ser comprado de muitos países", escreve Miller, "nossa produção de poder computacional depende fundamentalmente de uma série de pontos: ferramentas, substâncias e softwares que frequentemente são produzidos por apenas um punhado de empresas –e às vezes apenas por uma." Fábricas situadas só em Taiwan fornecem mais de um terço do novo poder computacional acrescentado a cada ano e são especialmente dominantes no caso de chips mais avançados. Se essas fábricas fossem destruídas por um terremoto ou capturadas numa invasão chinesa, as consequências seriam cataclísmicas.

Estamos acostumados a pensar na geopolítica da energia, mas é muito possível que a geopolítica dos semicondutores venha a definir a próxima era. Hoje a China gasta mais dinheiro importando semicondutores que petróleo, e a administração Biden está de olho nessa vulnerabilidade. Ele proibiu a venda dos semicondutores mais avançados a clientes chineses e está tentando, por meio da lei CHIPS, fazer os EUA voltarem a ser líder mundial na manufatura de semicondutores avançados. Se a administração conseguir seu intento, isso será uma realização notável.

A indústria de semicondutores nasceu nos EUA, mas perdemos há muito tempo nossa posição de domínio na fabricação daquilo que inventamos. Parte da razão disso é o custo. Estima-se que a construção e operação de uma fábrica do setor nos EUA custe 30% mais ao longo de dez anos do que custa em Taiwan, na Coreia do Sul ou em Singapura.

Os semicondutores são uma prioridade de segurança nacional. O alto custo de sua fabricação nos EUA virou um risco para a segurança nacional. Esse raciocínio foi suficientemente persuasivo para que a Lei CHIPS fosse aprovada com apoio de ambos os partidos. E há muito do que se gostar na legislação. Mas é muito difícil ler as diretrizes que a administração acaba de divulgar e enxergar um esforço sério para reduzir custos. O governo está acrescentando subsídios com uma mão e somando exigências com outra.

A página 11, por exemplo, recomenda uma solicitação prévia de construção que inclua um questionário ambiental "para avaliar o nível provável de revisão sob a Lei Nacional de Política Ambiental". A página 21 pede que o plano "inclua mulheres e outros indivíduos em situação de desvantagem econômica na indústria de construção", "incentiva fortemente" o uso de acordos trabalhistas nos projetos e define os requisitos de "acesso a creche para os trabalhadores na fábrica e na construção".

Chips semicondutores em circuito de computador - Florence Lo - 25.fev.22/Reuters

As páginas 23 e 24 pedem que os candidatos detalhem como vão incluir em sua cadeia de fornecedores firmas de propriedade de membros de minorias étnicas, veteranos militares e mulheres, além de pequenas empresas. E há os requisitos do "plano de responsabilidade climática e ambiental", além de investimentos comunitários em áreas como trânsito, habitação acessível e escolas.

Muitas dessas são metas louváveis. Mas são metas boas para ser incluídas neste projeto?

"O que estão tentando fazer com a política industrial é incrivelmente difícil", disse Adam Ozimek, economista chefe do Economic Innovation Group. "Se você quer construir uma rodovia e os custos estão altos demais, você põe mais dinheiro no projeto. Mas quando você está tentando catalisar a expansão de uma indústria globalmente competitiva, é uma questão de sucesso ou fracasso. Não é o tipo de ambiente em que você deveria estar tentando alcançar sete ou oito outras metas ao mesmo tempo, especialmente quando pessoas dessa indústria dizem que as razões por que não investem tanto nos EUA quanto no passado é a burocracia e os altos custos."

Não é assim que a secretária do Comércio, Gina Raimondo, encara a situação. "Cada um dos requisitos busca incentivar critérios ou fatores que achamos que se relacionam diretamente à eficiência do projeto", disse-me. "Você quer construir uma fábrica que vai empregar entre 7.000 e 9.000 trabalhadores. O índice de desemprego no setor da construção é basicamente zero. Se você não encontrar uma maneira de atrair mulheres para ser pedreiras, soldadoras e encanadoras, você não vai ter êxito. Portanto, é preciso pensar em oferecer creches."

Quando conversei com membros da administração, esse foi o argumento principal que ouvi: um problema enorme para a ampliação da indústria doméstica de manufatura de semicondutores é o desenvolvimento da força de trabalho. Por isso a administração está tentando pressioná-las a encarar o desenvolvimento da força de trabalho sob uma ótica mais inclusiva. Elas precisam construir suas fábricas agora e povoá-las de profissionais agora e precisam de um canal que produza talentos para o futuro.

O desafio da abordagem "bagel com tudo" à governança é que às vezes é exatamente a coisa certa a fazer. Faz sentido real criar condições para que a cadeia de fornecimento da energia renovável seja suprida por empresas situadas no país. Garantir que os empregos em fábricas de semicondutores sejam bons empregos é válido. Mas a acumulação encerra um custo. Quando é que que as metas e os padrões se tornam excessivos? E por que é tão raro subtrair requisitos? É impossível ler essas leis e diretrizes e não perceber que os acréscimos raramente são acompanhados por subtrações. Processos são adicionados com afinco, mas raramente se abre mão de algum outro processo em contrapartida.

O resultado é que os projetos públicos –desde habitação acessível até fábricas de semicondutores— não têm custo competitivo, e isso os deixa vulneráveis quando as condições econômicas se complicam ou uma nova administração chega ao poder e o governo corta gastos. O liberalismo é muito mais adepto a ver onde o governo poderia gastar mais do que em determinar como ele poderia fazer seus gastos serem mais bem aproveitados, e em menos tempo.

Tradução de Clara Allain

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