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Taiwan aposta na indústria de chips contra temor da invasão chinesa

Silicon Shield, o setor de semicondutores da ilha, vira espécie de seguro de vida para deter ameaças de Pequim

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Taipé

Cenas fragmentadas e sombrias de Taipé se transmutam em malhas formadas por incontáveis semicondutores. A instalação "Wafer Bearer Deep Rain", exposta no Museu de Arte Contemporânea da capital de Taiwan, reflete uma autoimagem pouco percebida no Ocidente: o principal ativo econômico da ilha é visto como um seguro de vida ante uma invasão da China, algo intrínseco à sua existência.

O risco de um ataque elude o visitante casual. Para ele, é a Covid, não o gigante asiático separado por 130 km de mar, a prioridade do governo local. Ao desembarcar, cada passageiro recebe quatro autotestes de detecção do coronavírus. Nas ruas, é raríssimo ver alguém sem máscara e, em estabelecimentos comerciais, comum encontrar um funcionário na entrada só para espirrar álcool nas mãos dos clientes.

Rua de Taipei, capital de Taiwan, com propagando política em razão das eleições locais
Rua de Taipé, capital de Taiwan, com cartazes de propaganda política em razão das eleições locais - Daigo Oliva/Folhapress

Mas uma espiada na primeira página do Taipei Times no dia seguinte ao encontro entre Joe Biden e Xi Jinping na Indonésia mostra que não é bem assim. Sem esconder o viés caseiro, o jornal coloca o presidente dos EUA, "opondo-se às intimidações contra Taiwan", como protagonista em sua manchete.

Peça central nas tensões entre Washington e Pequim, Taiwan, refúgio dos perdedores na guerra civil vencida pelos comunistas em 1949, é vista como uma província rebelde pela China, e a promessa de reabsorvê-la vem sempre acompanhada da retórica de que o uso de força para tal não está descartado.

Em Taipé, no entanto, é muito difícil encontrar referências visuais às ameaças da China. Há, na verdade, entre a população, um ceticismo em torno da ideia de que um ataque continental de fato vai ocorrer, ao menos num futuro próximo, assim como a crença de que o cotidiano da cidade, com as onipresentes scooters em suas ruas movimentadas —e um tanto silenciosas—, será preservado.

Os mais jovens, sobretudo, tratam com certa indiferença os alertas de Pequim, talvez um blefe, como definiu um barman de 28 anos no distrito de Da’an. Para quem cresceu escutando avisos de que Taiwan será tomada, a repetição das advertências faz com que elas pareçam mais bravatas do que intimidações.

Pesquisa de agosto da Taiwanese Public Opinion Foundation mostrou que 52,7% dos entrevistados consideram a chance de uma invasão muito improvável ou impossível, enquanto 26,7% afirmam que há alguma possibilidade e 12,3% acreditam ser altamente possível —8,4% não souberam responder.

Parte dessa convicção se fia no Silicon Shield, ou escudo de silício, referência à indústria de chips de Taiwan, com o gigante TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing Company) à frente. Responsável por cerca de 90% do mercado de semicondutores de alta qualidade, a empresa, assim como outras do tipo ali, serviria como uma garantia, já que um conflito traria sérias repercussões à cadeia de suprimentos global.

"Um bombardeio sobre a nossa fábrica é a última coisa com a qual me preocupo", afirma Miin Wu, CEO da Macronix, outra a produzir chips em Taiwan. "Porque os semicondutores daqui estão numa posição de grande liderança, e a economia global num mundo sem os nossos chips estaria em um grande problema."

Wu, claro, é parte interessada na questão, já que chefia uma companhia do setor, mas os semicondutores, presentes em itens de toda a sorte, de celulares a máquinas de lavar, de carros a material bélico, de fato viraram uma obsessão de EUA e China, dada a dificuldade para produzi-los. Questionado pela CNN sobre por que ambos os países ainda não são capazes de fazer chips de alta qualidade como Taiwan, Mark Liu, presidente da TSMC, respondeu: "Eles podem, daqui a alguns anos". Nessa indústria, experiência conta.

Em agosto, o governo Biden anunciou o Chips Act, pacote de investimentos e restrições para estimular a produção de semicondutores nos EUA. Por um lado, o democrata liberou verbas bilionárias para atrair —ou forçar, a depender de quem conta— empresas a construir fábricas de chips no país, como fará a TSMC no Arizona. Por outro, a medida tenta controlar o fluxo dos componentes, impondo regras para que itens que possuem materiais americanos não sejam exportados para a China, prejudicando a capacidade de Pequim de acessar tecnologias cruciais e retardando o programa militar do país asiático.

Os movimentos da Casa Branca para garantir o fornecimento de componentes também apontam para um possível problema para Taiwan, já que, sem depender dos produtos mais valiosos da ilha, os EUA poderiam ter menos interesse em cumprir a promessa de defender o território de um eventual ataque chinês. Até agora, porém, a retórica americana é de comprometimento, como a controversa visita da democrata Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes dos EUA, em agosto, mostrou.

Seja como for, Wu, da Macronix, ficou acuado diante de jornalistas da imprensa internacional ao ser questionado sobre sua opinião em torno de uma reunificação da China com Taiwan —"Não sou um político, sou um cara qualquer". Dias atrás, Morris Chang, fundador da TSCM, parabenizou Xi, durante a cúpula da Apec, fórum para Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, em Bancoc, pelo terceiro mandato.

O cumprimento, que teria tido a permissão do governo de Taiwan, revela também a forte interação econômica entre as duas partes, um outro entrave para um esforço militar contra a ilha. Em 2020, segundo o governo taiwanês, o volume do comércio por meio do estreito foi de US$ 166 bilhões (R$ 883,3 bilhões).

"A China é o nosso maior parceiro comercial, com 30% do volume total de negócios", diz Chern-Chyi Chen, vice-ministro da Economia de Taiwan. "Não diria que somos dependentes da China. É mais uma relação mútua da cadeia de suprimentos, criada pela força do mercado. Não é o governo quem busca isso."

Antes de anexar a Crimeia, em 2014, a Rússia movimentava negócios na ordem de US$ 29 bilhões (R$ 154,3 bilhões) com a Ucrânia, volume incapaz de deter os desejos de Vladimir Putin de capturar a península e, oito anos depois, invadir o vizinho. Hoje, o conflito que se desenrola no Leste Europeu desde o final de fevereiro se tornou a principal referência para os taiwaneses do que pode acontecer na ilha.

Menções à Ucrânia pululam com frequência em entrevistas com pesquisadores e membros do governo. Por vezes, eles lembram que a descrença quase geral de que o líder do Kremlin iniciaria uma guerra serve de alerta para que a população taiwanesa não seja pega de surpresa.

Por isso, acadêmicos como Raymond C. E. Sung e I-Chung Lai, dos think tanks Taiwan New Constitution Foundation e Prospect Foundation, respectivamente, desafiam o ceticismo e destacam ser necessário manter o alerta ligado, recordando as previsões fracassadas de muitos analistas de que o custo de uma guerra seria muito alto e, por isso, não valeria pagar a conta —como Putin vem fazendo na Ucrânia.

"Uma das principais mensagens que transmitimos é: olhe para a Ucrânia. Os ucranianos achavam que a guerra era impossível, mesmo com o Exército russo na fronteira durante um mês inteiro. Eles achavam que os russos só estavam blefando", diz Sung. "Então dizemos: 'Precisamos nos preparar para o pior'."

O governo de Taiwan acompanha com atenção como esse jogo se dá, uma vez que os contextos domésticos vão influenciar eventuais assistências oferecidas por países aliados da ilha. Nos EUA, o peso de fatias descontentes com a alta do custo de vida proveniente de conflitos e reticentes com o gasto com nações estrangeiras pode ser crucial em uma eleição ou para guiar decisões de governos.

A declaração à mídia estrangeira do ministro das Relações Exteriores de Taiwan, Joseph Wu, espelha bem essa situação. Para ele, a China está observando, na Guerra da Ucrânia, como essa "fadiga psicológica" entre a população vai impactar na prática o envio de armas e de outros recursos. Outra referência direta ao conflito no Leste Europeu é a repetição por Taipé de que, no final, trata-se de uma questão de democracia contra regimes autoritários, discurso também encampado por Volodimir Zelenski.

De passado autoritário, com décadas sob lei marcial, Taiwan teve a sua primeira eleição presidencial livre em 1996. Desde então, reforça o discurso e dá mostras práticas de que é uma sociedade livre, numa diferença marcada em relação à ditadura liderada pelo Partido Comunista na China. Nas últimas semanas, Taipé estava inundada de propaganda política em razão dos pleitos locais, realizados neste sábado (26), com uma quantidade de cartazes que lembra o ambiente eleitoral do Brasil nos anos 1990.

Assim, a preocupação em se mostrar uma democracia vibrante também passa pelo temor de que Pequim esteja investindo em uma campanha de convencimento da população pela reunificação, por vezes com fake news —um caminho menos arriscado do que o de onerosos custos militares.

Com Xi cercado de homens que tendem a dizer apenas "sim, senhor" e prestes a iniciar um inédito terceiro mandato que pode se tornar um quarto, o tempo está do lado da China. Até lá, Taiwan reflete a obra da dupla de artistas Xia Lin e Sheryl Cheung exposta no Museu de Arte Contemporânea de Taipé, em que a capital taiwanesa, em meio a brumas e escuridão, transforma-se em milhões de semicondutores.

O jornalista viajou a convite do Ministério de Relações Exteriores de Taiwan

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