Fabrício Corsaletti

Poeta e cronista, autor de "Esquimó" e "Perambule".

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Fabrício Corsaletti

O herói das cidades

​​

Romolo

Depois de um dia de mal-estar e perplexidade, entrei no Google Earth pra andar um pouco em Kaysersberg —a mais bela aldeia medieval da Alsácia, segundo os franceses—, onde o cozinheiro, escritor e apresentador de TV Anthony Bourdain decidiu se matar.

O hotel Le Chambard é um prédio vermelho de três andares, sem contar a mansarda, com janelas pretas de madeira e arranjos de flores pendurados ao longo da fachada. 

Está localizado na esquina de uma viela de paralelepípedos a poucas quadras da zona rural —dá pra avistar um morro com pinheiros logo atrás.

Achei meio irônico um punk de espírito como ele morrer rodeado por essa atmosfera idílica e me perguntei se alguma boa piada amarga passou pela cabeça de Bourdain enquanto amarrava no pescoço o cinto do roupão. Mas é claro que ele já não estava em condições de rir de nada.

Todo suicídio é terrível por ser a confirmação de algo que já sabemos: que estamos todos atolados numa lama trágica, pessoal e insubstituível. Anthony Bourdain parecia justamente ter descoberto a fórmula mágica (e nunca ingênua) pra viver de verdade. 

Por isso a sua morte —sua tristeza, seu desespero final— deixou seus fãs tão abalados. O clichê diz tudo: foi como perder um grande amigo. Porque Bourdain não era uma celebridade. Ao contrário: era a anticelebridade. 

​Se uma bomba explodisse o mundo do show business, ele continuaria a fazer sentido. E sairia do mesmo jeito, a pé, por ruas e avenidas desconhecidas, em busca do prato perfeito, que ele sem dúvida encontraria em algum boteco podre, com uma cozinheira nobre, a quem demonstraria gratidão.

Nos últimos dez anos, minha mulher e eu assistimos a todos os episódios de seu “No Reservations” e lemos todos os seus livros; era raro a gente passar uma semana, ou um mês que fosse, sem tocar no seu nome. Ele deu muitas coisas boas pros seus espectadores. Principalmente: um certo olhar sobre as cidades. Do que se trata. O que vale a pena. Como penetrar na corrente sanguínea de outra cultura. Etc.

Seu faro pra bares era imbatível. Seu texto pra TV era o mais vivo, o mais engraçado e o mais lírico —de um lirismo alucinado, à Hunter Thompson, uma de suas claras influências. Seus melhores programas, quando ele estava inspirado e feliz, deviam ser exibidos toda sexta-feira nos cinemas da Augusta, e os finais de semana dos paulistanos seriam bem mais divertidos.

Só não tenho coragem de dizer que o mundo ficou pior depois da sua morte porque tenho certeza que o mundo ficou melhor depois da sua vida. Que ele permaneça em nossos brindes, em nosso cinismo e em nossos corações durante muito tempo.

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.