Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Fernanda Torres

Séries como 'Mrs. America' ganham ao fugir do xerox raso da atualidade

É preciso cuidado para não impor uma tradução literal dos anseios de hoje às épocas pregressas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Nesta semana, contabilizei 15 casos de Covid em pessoas próximas. A segunda onda promete. Exausta, apelo para o escapismo das séries de televisão, com dez horas de alienação garantidas por temporada.

Penny Dreadful” traz a estonteante Eva Green no papel de uma inglesa oitocentista possuída pelo demônio. A série reúne personagens fantásticos do século 19 numa mesma Londres: Dorian Gray, o lobisomen, Dr. Jekyll and Mr. Hyde, Drácula, Dr. Frankenstein e a criatura. A trama diverte até o 20º capítulo, depois afunda num panfleto feminista insuportável.

O problema se repete em “O Alienista”, estrelado pelo excelente Daniel Brühl. Na segunda temporada, o médico detetive Laszlo Kreizler, mistura de Sherlock Holmes com Sigmund Freud, é rebaixado à coadjuvância da também detetive Sara Howard, encarnada pela não tão talentosa Dakota Fanning.

Ilustração abstrata de forma circular preenchida preta no centro da composição. Em volta da formal central, há diversas linhas concêntricas e irregulares
Marta Mello

A vilã é excelente, o enredo idem, mas a sequência se arrasta num eterno mea culpa das figuras centrais masculinas, homens que teimam em falhar, se arrepender, reconhecer suas limitações e praticar atos de contrição, diante da incomensurável superioridade feminina.

É certo que as sufragistas são as avós do MeToo. Mas é preciso cuidado para não impor uma tradução literal dos anseios de hoje às épocas pregressas. A ficção ganha quando escapa do xerox raso da atualidade.

Nisso, “Mrs. America” e “A Voz Mais Forte” se destacam. Sem trair a perspectiva histórica, as duas séries somadas contemplam a ascensão do conservadorismo, do moralismo cristão, do racismo, do nacionalismo e do machismo nos últimos 50 anos.

O fim da Guerra Fria promoveu a abertura de fronteiras e mercados, fortalecendo governos democráticos com viés progressista. A ilusória paz romana terminaria com o atentado às Torres Gêmeas. Guerras, terrorismo e levantes populares alimentaram a instabilidade e o medo. Não demoraria para que o nacionalismo populista de extrema direita ressurgisse das cinzas, evocando Deus, pátria, família e propriedade.

A anti-heroína de “Mrs. America” é o ovo da serpente dessa guinada. No início da década de 1970, Phyllis Schlafly, uma dona de casa do Missouri com ambições políticas e fixação na corrida armamentista, percebeu no antagonismo à marcha feminista pela aprovação da ERA, Equal Rights Amendment —emenda constitucional que garantiria às mulheres americanas direitos iguais aos dos homens—, o caminho para a consolidação do ativismo ultraconservador.

Os republicanos não se opunham à emenda, mas a partir da mobilização de Schlafly, as pautas ligadas aos costumes foram adicionadas ao tabuleiro político, dividindo os partidos Republicano e Democrata não só na economia, mas também no comportamento e na moral.

“Mrs. America” narra o embate entre o Eagle Forum de Schlafly e o ERA Now, campanha encabeçada por ícones feministas do calibre da jornalista Gloria Steinem, da escritora Betty Friedan, da advogada Bella Abzug, da republicana Jill Ruckelshaus e de Shirley Chisholm, primeira afro-americana congressista, pré-candidata à Presidência dos Estados Unidos.

Todas as personagens da série, à direita e à esquerda, sofrem de contradição. Há algo de Friedan em Schlafly e de Schlafly em Friedan.

Friedan se mostra avessa às reivindicações das “partisans” lésbicas; Steinem, desatenta às nuances dos grupos de ativistas negras; Abzug faz concessões políticas e Schlafly enfrenta o ciúme do marido pelo seu sucesso como lobista.

Independentemente do credo, a luta para existir num mundo comandado por machos que veem na cantada um elogio é traço comum a todas elas. Com um roteiro livre de maniqueísmo, “Mrs. America” aborda a sororidade, a desigualdade entre os gêneros, o racismo, a misoginia e o preconceito, sem confundir 2020 com 1970.

A Voz Mais Forte” segue o mesmo princípio, recriando a trajetória do monstruoso Roger Ailes, fundador da conservadoríssima Fox News.

Vivido por um irreconhecível Russell Crowe, Ailes acaba deposto devido a gravíssimas acusações de assédio.

Schlafly e Ailes comungam da mesma América.

Os dois ajudaram Reagan a se eleger e detectaram lacunas no campo da extrema direita, que logo trataram de ocupar. Ela, por meio de um antifeminismo virulento em prol da família tradicional; ele, apostando num canal de TV a cabo dedicado ao renegado nicho conservador.

“A Voz Mais Forte” é a continuação de “Mrs. America”. Sem clichês, ambas abordam as raízes do horror de agora com rara sutileza e inteligência.

É o que espero da nova 007.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.