Nesta semana, contabilizei 15 casos de Covid em pessoas próximas. A segunda onda promete. Exausta, apelo para o escapismo das séries de televisão, com dez horas de alienação garantidas por temporada.
“Penny Dreadful” traz a estonteante Eva Green no papel de uma inglesa oitocentista possuída pelo demônio. A série reúne personagens fantásticos do século 19 numa mesma Londres: Dorian Gray, o lobisomen, Dr. Jekyll and Mr. Hyde, Drácula, Dr. Frankenstein e a criatura. A trama diverte até o 20º capítulo, depois afunda num panfleto feminista insuportável.
O problema se repete em “O Alienista”, estrelado pelo excelente Daniel Brühl. Na segunda temporada, o médico detetive Laszlo Kreizler, mistura de Sherlock Holmes com Sigmund Freud, é rebaixado à coadjuvância da também detetive Sara Howard, encarnada pela não tão talentosa Dakota Fanning.
A vilã é excelente, o enredo idem, mas a sequência se arrasta num eterno mea culpa das figuras centrais masculinas, homens que teimam em falhar, se arrepender, reconhecer suas limitações e praticar atos de contrição, diante da incomensurável superioridade feminina.
É certo que as sufragistas são as avós do MeToo. Mas é preciso cuidado para não impor uma tradução literal dos anseios de hoje às épocas pregressas. A ficção ganha quando escapa do xerox raso da atualidade.
Nisso, “Mrs. America” e “A Voz Mais Forte” se destacam. Sem trair a perspectiva histórica, as duas séries somadas contemplam a ascensão do conservadorismo, do moralismo cristão, do racismo, do nacionalismo e do machismo nos últimos 50 anos.
O fim da Guerra Fria promoveu a abertura de fronteiras e mercados, fortalecendo governos democráticos com viés progressista. A ilusória paz romana terminaria com o atentado às Torres Gêmeas. Guerras, terrorismo e levantes populares alimentaram a instabilidade e o medo. Não demoraria para que o nacionalismo populista de extrema direita ressurgisse das cinzas, evocando Deus, pátria, família e propriedade.
A anti-heroína de “Mrs. America” é o ovo da serpente dessa guinada. No início da década de 1970, Phyllis Schlafly, uma dona de casa do Missouri com ambições políticas e fixação na corrida armamentista, percebeu no antagonismo à marcha feminista pela aprovação da ERA, Equal Rights Amendment —emenda constitucional que garantiria às mulheres americanas direitos iguais aos dos homens—, o caminho para a consolidação do ativismo ultraconservador.
Os republicanos não se opunham à emenda, mas a partir da mobilização de Schlafly, as pautas ligadas aos costumes foram adicionadas ao tabuleiro político, dividindo os partidos Republicano e Democrata não só na economia, mas também no comportamento e na moral.
“Mrs. America” narra o embate entre o Eagle Forum de Schlafly e o ERA Now, campanha encabeçada por ícones feministas do calibre da jornalista Gloria Steinem, da escritora Betty Friedan, da advogada Bella Abzug, da republicana Jill Ruckelshaus e de Shirley Chisholm, primeira afro-americana congressista, pré-candidata à Presidência dos Estados Unidos.
Todas as personagens da série, à direita e à esquerda, sofrem de contradição. Há algo de Friedan em Schlafly e de Schlafly em Friedan.
Friedan se mostra avessa às reivindicações das “partisans” lésbicas; Steinem, desatenta às nuances dos grupos de ativistas negras; Abzug faz concessões políticas e Schlafly enfrenta o ciúme do marido pelo seu sucesso como lobista.
Independentemente do credo, a luta para existir num mundo comandado por machos que veem na cantada um elogio é traço comum a todas elas. Com um roteiro livre de maniqueísmo, “Mrs. America” aborda a sororidade, a desigualdade entre os gêneros, o racismo, a misoginia e o preconceito, sem confundir 2020 com 1970.
“A Voz Mais Forte” segue o mesmo princípio, recriando a trajetória do monstruoso Roger Ailes, fundador da conservadoríssima Fox News.
Vivido por um irreconhecível Russell Crowe, Ailes acaba deposto devido a gravíssimas acusações de assédio.
Schlafly e Ailes comungam da mesma América.
Os dois ajudaram Reagan a se eleger e detectaram lacunas no campo da extrema direita, que logo trataram de ocupar. Ela, por meio de um antifeminismo virulento em prol da família tradicional; ele, apostando num canal de TV a cabo dedicado ao renegado nicho conservador.
“A Voz Mais Forte” é a continuação de “Mrs. America”. Sem clichês, ambas abordam as raízes do horror de agora com rara sutileza e inteligência.
É o que espero da nova 007.
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