Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres

Todo governante está sujeito às adversidades do tempo

De Elizabeth 1ª à 2ª, de Dilma Rousseff ao atual presidente, todos estão à mercê

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"A época era a elisabetana; sua moral não era a nossa; nem seus poetas; nem seu clima; nem mesmo suas hortaliças. Tudo era diferente. O próprio tempo — o calor do verão e o frio do inverno — era, podemos pensar, toda uma outra coisa [...] Poentes eram mais rubros e mais intensos; as auroras, mais alvas e mais fulgentes. De nossas meias-luzes crepusculares e de nossos demorados lusco-fuscos nada sabiam."

Assim Virginia Woolf descreve, em "Orlando, uma Biografia", as reviravoltas sociais, religiosas e climáticas vividas pelos ingleses, no período posterior à morte de Elizabeth 1ª.

"O próprio tempo [...] era toda uma outra coisa", afirma a autora. Em 1608, cinco anos após a coroação de James 1º —filho da rainha da Escócia, Mary Stuart, decapitada por ordem de Elizabeth 1ª— uma onda de frio jamais vista se abateu sobre a Inglaterra.

Bolsonaro deitado sobre uma montanha de ossos (caveiras), com olho arregalado de êxtase -- ele está de boca aberta, para onde estão vertendo 3 comprimidos de viagra, que caem de um frasco de remédio que se sustenta sozinho no ar.
Ilustração publicada em 15 de setembro de 2022 - Marta Mello

Rios, lagos e toda a costa da ilha congelaram. Pássaros despencavam do céu, petrificados em pleno voo; pescadores se arriscavam a caminhar sobre o mar solidificado, para resgatar os barcos presos ao gelo. Os cursos d’água cessaram de correr, os moinhos de girar e não tardou para que a fome e a doença se espalhassem pelo reino, associando, para sempre, James 1º ao tortuoso inverno. O monarca não evocou a tormenta, mas acabou confundido com o mau-tempo.

Quatrocentos anos depois, no último verão de Elizabeth 2ª, uma estiagem mais do que severa minguou o Tâmisa, esturricando o verde dos parques. Uma catástrofe natural comparável à de 1608, mas com o termômetro no vermelho. O causticante siroco de julho marca o fim da segunda era elizabetana.

Elizabeth 2ª foi coroada jovem, num mundo em reconstrução. Charles 3º é ungido na terceira idade, num planeta em convulsão. A monarquia inglesa pouco nos afeta, mas é impossível não pensar no câmbio dos séculos, quando se trata das dinastias.

Talvez por influência de "A Rainha Lira", de Roberto Schwarz —adaptação de "Rei Lear" para a tragédia de Dilma Rousseff—, o calor que precedeu a morte de Elizabeth 2ª me fez lembrar tanto de "Orlando" quanto da seca que castigou nossa república, nos três anos que antecederam o impeachment da ex-presidenta.

Em novembro de 2015, a primavera nem terminara e o calor já era insuportável. Há muito não chovia, os reservatórios trabalhavam abaixo do volume mínimo e o custo da energia disparava. Dia 15, acordei cedo para admirar a rara manhã nublada. Uma rajada de brisa fresca ainda lambia a lagoa Rodrigo de Freitas, resto de um ciclone que atravessara a madrugada. Foi quando notei, do outro lado da margem, um imenso destroço retorcido.

Era a árvore de Natal da lagoa, a famigerada geringonça de 350 toneladas, 50 metros de altura, 2,5 milhões de microlâmpadas, 105 km de mangueira luminosa e 6 geradores sobre balsas, a maior árvore de Natal flutuante do globo terrestre, colapsada sobre si mesma, como um vulcão extinto.

Ao longo de 20 anos, o enfeite se transformara num símbolo de consumo e prosperidade. A cada dezembro, ela surgia mais alta e brilhante, saudada com fogos de artifício e orquestra. Os peregrinos começavam a romaria nos shoppings, adentravam o engarrafamento em procissão e terminavam
a jornada adorando o gigantesco cone reluzente, patrocinado por um banco sólido.

Sou de natureza supersticiosa e vi, no cadáver do colosso natalino, o sinal do fim dos "poentes rubros" da retomada democrática. O ano de 2016 confirmou as suspeitas.

Sete anos de vacas magras nos afastam daquela manhã. Desde os delírios golpistas do Sete de Setembro de 2021, o Dia da Independência roubou do Natal o protagonismo no calendário das festas.

A tensão era grande, na tarde anterior à do bicentenário. Durante o ensaio do grupamento de salto da Aeronáutica, uma lufada súbita carregou três experientes paraquedistas para o coração de Copacabana. Foi como se um espírito travesso, um Saci Pererê disfarçado de redemoinho, tivesse agido por troça.

O acidente, benza Deus sem mortos ou feridos graves, terminou com um soldado pendurado num galho e os outros dois estatelados no asfalto. Memes cômicos, embalados pelo hit "It’s Raining Man", do The Weather Girls, viralizaram as imagens. E eu, que creio no que não existe, vi nos três paraquedas murchos o gatilho do imbrochável, puxado em coro pelo chefe maior, no palanque cívico do dia seguinte.

Todo governante está sujeito às intempéries, mesmo as mais sutis. Que bons ventos nos levem até outubro e além.

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