Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

Perguntas de mais ou de menos

Se questões incômodas deixarem de ser feitas, o que restará do jornalismo?

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Tanto já aconteceu nos últimos dias que as manifestações em favor da educação parecem ter ocorrido há tempos.

O tema foi um dos mais lidos na Folha, portanto gostaria de falar sobre dois episódios ligados de certa forma à educação ocorridos na semana.

Ilustração de Carvall
Carvall

As manifestações em resposta à decisão do ministro da Educação de reduzir o orçamento das universidades federais e bloquear bolsas de pesquisa foram amplas.

A reação do presidente, que estava nos Estados Unidos, oscilou entre a tentativa de enumerar argumentos mais técnicos para justificar o bloqueio (“não há dinheiro nos cofres públicos”) e a disposição de desferir impropérios contra os manifestantes.

Ainda na quarta-feira (15), Jair Bolsonaro chamou os milhares que foram às ruas de “imbecis”, “idiotas úteis” e “massa de manobra”.

No dia seguinte, em meio aos questionamentos sobre as investigações que envolvem um de seus filhos, o presidente manteve a postura bélica até responder aos berros a uma pergunta feita por uma jornalista da Folha.

“Primeiro, você, da Folha de S.Paulo tem que entrar de novo numa faculdade que presta e fazer um bom jornalismo”, disse o presidente, após a repórter ter usado a palavra corte como sinônimo de contingenciamento (bloqueio).

“É isso que a Folha tem que fazer, e não contratar qualquer uma ou qualquer um para ser jornalista, para ficar semeando a discórdia e perguntando besteira por aí e publicando coisas nojentas.”
Ato contínuo, o vídeo do bate-boca foi publicado nas redes sociais do presidente.

Não é a primeira vez que Bolsonaro entra em discussão com um repórter da Folha. A tensão entre o presidente e seus apoiadores e a imprensa também não é algo novo.

A Folha agiu bem não só ao permitir que a repórter relatasse os fatos em primeira pessoa como ao optar por publicar o vídeo junto com o relato.

A questão é que esse tipo de atitude constrange e afeta o trabalho do jornalista e pode comprometer algo que interessa ao leitor: a informação.

Até que ponto posso fazer perguntas sem ser atacado? Se as perguntas incômodas deixarem de ser feitas, o que restará do jornalismo?

Numa outra vertente, também ligada à educação, o caso da pesquisadora que disse ter um título que não tem foi outro a chamar a atenção.

Aqui, perguntas deixaram de ser feitas. 

A Folha, que já havia entrevistado a doutora Joana D’Arc Félix de Sousa, não se saiu bem na apuração.

Coube ao Estado de S. Paulo dar o “furo” jornalístico, mostrando que Joana mentiu ao dizer que havia feito um pós-doutorado em Harvard.

O caso é emblemático porque esbarra em um dos pilares do jornalismo: a confirmação da veracidade de dados de modo a não comprometer a informação.

Suspeito que não seja sempre que repórteres chequem as credenciais de alguém com prestígio. Por que agora duvidaram de Joana?

A reportagem do Estado diz que a idade errada (a pesquisadora disse que tinha 37 anos quando tinha acabado de completar 54 anos) acendeu o alerta e o concorrente decidiu pedir documentos que comprovassem o pós-doutorado.

A ignorância sobre o que é um pós-doutorado (um estágio de pesquisa que não dá direito a um título) parece ter prolongado a confusão.

Questionada, a pesquisadora enviou o diploma, a reportagem mandou-o para Harvard, que afirmou que não emite diploma para pós-doutorado. Nem Harvard nem provavelmente nenhuma outra universidade.

A professora e pesquisadora Joana D'Arc Felix de Sousa
A professora e pesquisadora Joana D'Arc Felix de Sousa - Reprodução/Senai

A história ganhou corpo porque Joana é uma professora negra, de origem pobre, e com um baita histórico de superação. Agora, há uma corrida entre os jornais para ver quem consegue descobrir a próxima inconsistência. 

Quando é que a história deixa de ter relevância jornalística para dar lugar à busca desenfreada pelo furo? 

No mais, o currículo de Joana se mantém: a pesquisadora segue parte de uma elite que tem graduação, mestrado e doutorado numa das principais universidades públicas do país, a Unicamp.

O jornalismo pode aprender com o caso, mas não só ele. Os leitores também.

Joana disse que desativou suas redes sociais porque sofre ataques e recebe ameaças. 

Comentários espalhados pelas matérias sugerem que a pesquisadora só chegou aonde chegou por pena de quem a encontrou pelo caminho ou que o caso é resultado direto da política de cotas.

Joana, entretanto, entrou na universidade na década de 1980, quando não havia nenhum tipo de ação afirmativa.

É mais gente no grupo dos que acusam o outro de semear a discórdia enquanto se especializa mesmo em cultivar ressentimentos. Mais perguntas e mais diálogo, por favor.

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