Flavia Lima

Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

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Flavia Lima

A cobertura da vacina da Covid

No papel de estraga-prazeres, caberá à imprensa dizer que normalidade está longe

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Na quarta-feira (9), o evento mais esperado do ano por boa parte do globo ganhou destaque nas primeiras páginas e telas da imprensa mundial: a primeira aplicação de vacina contra a Covid-19.

A imagem da primeira pessoa vacinada, uma mulher de 90 anos no Reino Unido, trouxe alento, mas é só o começo da trajetória rumo à imunização geral, que promete ser longa.

Na ilustração, um barquinho de papel preto está sobre água azul, e ao redor dele, formas brancas com formato similar ao do coronavírus
Carvall

Para a imprensa, inaugura a segunda etapa de uma extenuante cobertura que, nos primeiros meses, não só acabou norteando a forma como a população brasileira encararia um vírus até então desconhecido como se mostrou relevante para orientar um país carente de comunicação oficial organizada.

Na primeira etapa, diante da falta de transparência dos dados públicos, uma das provas mais importantes desse esforço informativo foi o consórcio de veículos formado para acompanhar e publicar diariamente o número de contaminados e mortos pela Covid-19.

Agora, com o surgimento das primeiras vacinas contra o coronavírus, o principal desafio apresentado à imprensa é esmiuçar a informação disponível sem, com isso, alimentar a mensagem irresponsável de que a pandemia "está no finalzinho"—segundo disse o presidente Jair Bolsonaro na quinta (10), em afirmação flagrantemente desmentida pelos números (mais de 180 mil mortes), como estampou a Folha em manchete do jornal impresso na sexta (11).

Tudo sendo tocado por Redações exaustas, com a maioria de seus profissionais em home office, em discussões sobre a possibilidade de um retorno ou não ao trabalho presencial, eles mesmos preocupados com a doença e também com outro tipo de vírus que acomete a profissão como um todo há mais tempo, as demissões.

Na sexta-feira, uma boa entrevista feita pelo jornal O Globo com Carla Domingues, epidemiologista à frente do PNI (Programa Nacional de Imunizações) de 2011 a 2019, ajuda a entender quanto a desorganização pode nos custar e oferece uma espécie de roteiro a ser seguido nos questionamentos às autoridades públicas.

A estratégia de vacinação vai ser federalizada? Todas as vacinas aprovadas por órgãos competentes vão ser incorporadas ao plano nacional? O que podemos esperar das vacinas prometidas pelo consórcio global do qual o Brasil faz parte? Mesmo que o governo federal incorpore a vacina produzida pelo Butantan, haverá vacina para todo o mundo? Em quanto tempo?

E mais: as crianças serão vacinadas? Como devem agir os pais que esperam a vacina para mandar seus filhos de volta às escolas? Quando é razoável esperar que todos os grupos que precisam ser vacinados estejam vacinados? Por que ainda não temos um plano estruturado de vacinação?

Muitas dessas dúvidas têm origem na guerra declarada entre o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), cujos efeitos sanitários precisam ser bem explicados.

Nesse sentido, tentar entender, como faz parte das tarefas da imprensa, se é por abnegação ou por puro oportunismo político que Doria promove a vacina chinesa produzida em parceria com o Instituto Butantan é bem menos relevante do que esclarecer quais são os riscos embutidos em planos de vacinação estaduais pulverizados e desconectados de um plano federal ou buscar explicar o nível de excelência do Instituto Butantan na produção de uma vacina segura para a toda a população.

Sobre a cobertura do coronavírus, é possível dizer, sem correr o risco de ser benevolente, que a imprensa tem cumprido o seu papel de informar e cobrar autoridades competentes, no maior desafio sanitário da história recente tocado por um governo que ainda se pergunta se haverá demanda por uma vacina eficaz.

Especialistas têm alertado para um quadro informativo contraditório: as boas notícias relativas ao início da vacinação nos países mais ricos podem acabar gerando más notícias na sequência: o aumento da confiança da população diante da existência de imunizantes favorece uma ainda maior desmobilização em relação aos cuidados que devem continuar sendo tomados, como uso de máscara, distanciamento e higienização constante das mãos.

Além disso, há o medo e o preconceito gerados pelo desconhecimento sobre os imunizantes, ou alimentados pela desinformação proposital espalhada pelas redes sociais e aplicativos de mensagens. A demanda por bom jornalismo deve continuar.

Portanto, a imprensa vai ter de se comportar como um grande desmancha-prazeres, alertando de que, mesmo havendo boas notícias, a normalidade ainda está distante—o que não vai contribuir para reduzir a angústia, a tristeza e o cansaço da população acumulados em todos esses meses, mas pode ajudar a preservar vidas.

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