Guilherme Boulos

Professor, militante do MTST e do PSOL. Foi candidato à Presidência da República e à Prefeitura de São Paulo.

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Guilherme Boulos

Sem-teto comendo acarajé incomoda mais que a fila do osso

Os mesmos que olham com indiferença a fome no Brasil expressam sua revolta com o prato baiano

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Em julho, uma fila com centenas de pessoas em Cuiabá para pegar ossos de carne. Em outubro, gente correndo atrás de um caminhão de lixo em busca de restos de comida em Fortaleza. Na semana passada, um homem desesperado gritando de fome entre os prédios de Brasília. E todo dia vemos gente implorando por comida com placas de papelão nos semáforos de São Paulo. Silêncio da milícia palaciana.

Mas bastou uma foto de Wagner Moura comendo um acarajé no prato numa ocupação do MTST para despertar a revolta da horda bolsonarista. Eduardo Bananinha, aquele que posou vestido de xeique, tentou ironizar num tuíte diretamente de Dubai e referiu-se à fome... na Venezuela. Flavio, seu irmão, aquele da mais que suspeita mansão de R$ 6 milhões, também entrou na onda.

​Quando pensam em camarão, deve lhes vir à mente pratos com preços exorbitantes do bolsonarista Coco Bambu. Como desconhecem a cultura brasileira, talvez valha a pena lembrar que o acarajé, comida típica baiana, tem camarão seco, além do vatapá e do caruru. Nada mais apropriado para servir ao baiano Wagner Moura no dia da exibição de um filme sobre outro baiano, Carlos Marighella. Aliás, o prato foi doado pelo restaurante Acarajazz —onde é vendido por R$20—, liderado pela ativista Bia Souza, que já havia feito outras doações para ocupações do MTST.

Foto mostra Wagner Moura se servindo de um dos kits de acarajé doado pelo restaurante Acarajazz
Wagner Moura se serve de um dos kits de acarajé doado pelo restaurante Acarajazz - Reproduçao/Guilherme Boulos

Os mesmos que olham com indiferença a fome no Brasil e silenciam com gastos perdulários do cartão corporativo presidencial e excursões a Dubai expressam sua revolta com o acarajé. Enfim, a hipocrisia. Mas neste caso vai além. A imagem não teria causado tamanho furor se não tivesse sido feita numa ocupação do movimento sem-teto.

No fundo, está aí a velha conhecida povofobia de setores da elite e da classe média brasileira. Um misto de aversão, desprezo e medo dos pobres. Nessas mentes, MTST e camarão não cabem numa mesma frase. Assim como não cabem —nem nunca couberam— negro e universidade, pobre e aeroporto, empregada doméstica e direitos trabalhistas. São consciências binárias, que funcionam com base em dois termos devidamente apartados: Casa Grande e Senzala. Cidadãos e subcidadãos.

A polêmica do camarão, além de expor hipocrisia e ignorância dos filhotes presidenciais, serviu para desnudar mais uma vez a real polarização de um Brasil que nunca superou seus 300 anos de escravidão. Sem-teto comendo acarajé incomoda mais do que a fila do osso. O medo da ascensão dos mais pobres faz com que parte da sociedade permaneça refém do ressentimento que dá vazão aos piores preconceitos. É preciso colocar o dedo nessa ferida aberta para que um dia possa cicatrizar. Mais camarão aos sem-teto!

Pessoas pegam restos de comida em caminhão de pelanca - Domingos Peixoto/Agência O Globo

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