Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Gustavo Alonso

Entre songbooks e Cifra Club, música popular brasileira vive apartheid

Enquanto coleções de CDs estão restritas a artistas consagrados, no site o sertanejo é o gênero mais clicado

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

O que se toca nos violões amadores Brasil afora? É difícil saber com precisão. Mas, com a ajuda da internet, podemos ter algumas pistas.

Quem, nos últimos anos, tentou aprender alguma música brasileira no violão, provavelmente esbarrou com o Cifra Club. Trata-se de um site e aplicativo com as letras e cifras de quase todas as canções populares no país. O Cifra Club, assim como os congêneres, como o Cifras.com.br, fazem o papel que antigamente era o das revistinhas de banca de jornal.

Quem viveu o mundo pré-internet sabe bem do que se trata. Eram revistinhas com capas muito características, que reproduziam as capas de discos dos artistas. As folhas eram de papel jornal. Produzidas em larga escala, eram acessíveis a muitos bolsos, e por isso bastante populares.

Hoje, sites como o Cifra Club divulgam, além das próprias cifras, videoaulas, aplicativos de afinadores, fóruns de discussão musical etc. O site é uma boa ferramenta para sondar o que se toca no Brasil hoje. O Cifra Club divulga quais são as canções mais clicadas e quantas visualizações determinado artista possui.

No entanto, nem tudo que se ouve se toca. Gêneros como a música eletrônica, e mesmo o funk, têm baixa visualização no site. Afinal, as cifras são tocadas em instrumentos harmônicos tradicionais, como violão, guitarra e teclado. Por isso, canções como "Bum Bum Tan Tan", que tem mais de 1 bilhão de visualizações no YouTube, não garantem ao seu cantor, MC Fióti, nem 150 mil visualizações no site. Anitta não está nem entre os cem artistas mais acessados. Os artistas do funk mais visualizados ainda são Claudinho & Buchecha, com quase 5,6 milhões de acessos. Afinal, a dupla carioca tinha uma pegada funkeira produzida nas linhas harmônicas do violão.

Dos seis artistas mais clicados no site, quatro são sertanejos: Jorge & Mateus, Victor & Leo, Bruno & Marrone e Luan Santana, nessa ordem. Esses artistas, somados, têm 626 milhões de acessos. A dupla Jorge & Mateus sozinha tem 218 milhões de acessos, atrás apenas da Legião Urbana. É muita coisa. Ainda mais considerando que o artista da MPB que mais se destaca é Djavan, onipresente nos bares do Brasil, com 59 milhões de acessos.

Aqueles que querem ter acesso às canções de Djavan não têm as plataformas virtuais como único meio. O compositor alagoano tem dois songbooks oficiais publicados, organizados pelo respeitado Almir Chediak, com textos sobre sua vida e canções partituradas e cifradas. Mas, para artistas de gêneros populares, sites como o Cifra Club são quase sempre a única forma de seu público ter acesso às suas músicas.

O compositor Victor Chaves, que formou a dupla Victor & Leo, tem a segunda canção mais acessada do Cifra Club: "Borboletas". Victor é um violonista de mão cheia, conseguindo transformar a simplicidade de suas canções em dedilhados rebuscados e solos criativos. Em uma entrevista recente, perguntei a ele se pretendia lançar um songbook. Victor disse que não saberia nem por onde começar para produzir um livro assim.

No Brasil, o songbook virou um produto refinado, que contempla apenas artistas de determinados gêneros musicais. O músico Almir Chediak começou a tarefa no fim dos anos 1980, criando a marca Songbook e uma editora para publicar os volumes, a Lumiar. Com a morte precoce de Almir, o irmão Jesus Chediak tomou para si a tarefa de fazer as partituras e cifras da música popular brasileira, até então veiculadas praticamente apenas pela cultura oral, a prática musical e as tais revistinhas de banca de jornal. O Songbook tornou-se um modelo de preservação da MPB através de partituras, letras e harmonias, revisadas pelos próprios compositores.

Trata-se de um material de verdadeira qualidade, mas restrito a poucos. Assim, temos songbooks oficiais de Tom Jobim, Edu Lobo, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, João Bosco, Djavan, João Donato, Ary Barroso, Toquinho, Nelson Motta, Braguinha, Rita Lee, Sá & Guarabira, Marcos Valle, Nelson Cavaquinho... Todos artistas associados ao rótulo MPB. Há ainda songbooks organizados por gêneros, como o choro e a bossa nova, em vários volumes.

No entanto, a família Chediak não prestou muita atenção nos gêneros populares-massivos, o que acarretou em desequilíbrios visíveis. Não há songbooks de artistas como Tonico & Tinoco, Tião Carreiro & Pardinho, Trio Parada Dura nem Zezé Di Camargo & Luciano. Em 2016, foram lançados dois volumes de "As 101 Melhores Canções do Século XX", totalizando 342 páginas. Nem uma única música sertaneja figura nesse rol. Sejamos justos: trata-se de um desequilíbrio que afeta não apenas a música sertaneja. Nenhum funk foi contemplado. Nenhuma música religiosa tampouco.

Por outro lado, se considerarmos o gosto daqueles que buscaram música no Cifra Club, entre as cem mais clicadas do site, há 23 canções que podem ser enquadradas como sertanejas e 27 canções que cabem no rótulo pop-rock. Treze canções são de MPB, sendo que a mais clicada pelos internautas violonistas é "Sozinho", composição de Peninha, cantada por Caetano Veloso. Há ainda 13 canções estrangeiras entre as mais tocadas, sendo "Sweet Child O' Mine", dos Guns’n’Roses, em quinto lugar. E há também canções católicas e evangélicas em abundância. Goste-se ou não, parece mais a cara do Brasil.

O songbook e o Cifra Club têm propósitos diferentes. O primeiro visa ser o repositório de uma produção refinada, legitimada com selo de qualidade. O Cifra Club não julga o valor estético das obras, apenas busca cliques. A produção musical brasileira está presente em ambos. E seria bom que essas coleções dialogassem mais, representando essa produção de forma mais sintética e menos segregada.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.