Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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O Brasil e a negação do futebol multicultural

Enquanto a Europa incorpora o hibridismo racial, o Brasil foge como o diabo da cruz da ideia de miscigenação

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Em recente coluna sobre a final da Eurocopa, o jornalista Juca Kfouri defendeu a tese de que os times europeus finalistas da competição se renderam à miscigenação. Enquanto o mundo incorpora a mistura racial, o Brasil perdeu a vanguarda desta bandeira.

Os dois grandes astros da vitória espanhola na Eurocopa foram estrangeiros —Nico Williams, que tem sangue ganês, e Lamine Yamal, de pai marroquino e mãe da Guiné Equatorial.

Os jogadores da Espanha Nico Williams e Lamine Yamal

O time inglês também abraçou a miscigenação. Sem contar os que ficaram no banco, seis negros jogaram sob a bandeira da rainha: Ollie Watkins, Kyle Walker, Kobbie Mainoo, Bukayo Saka, Marc Guéhi e Jude Bellingham.

A França, derrotada pela Espanha nas semifinais, foi o time europeu que primeiro ressignificou seu futebol ao incorporar os filhos coloniais. Até a década de 1980, a equipe francesa era composta só por brancos e seu grande herói nacional era Michel Platini, um francês tipo-ideal. Nunca ganharam uma Copa do Mundo sequer.

Com o fim do colonialismo francês no século 20, muitos ex-colonos migraram para a metrópole. Seus filhos seriam campeões do mundo sob a bandeira da França. Na década de 1990, o futebol francês da geração Zinedine Zidane incorporou árabes e negros, abraçando a ideia de uma França multicultural. Essa França negra e árabe foi campeã duas vezes.

Pode até parecer que não há preconceito no Velho Mundo. Não é isso que Juca quis dizer, obviamente. O preconceito racial ainda está lá, e a trajetória de Vini Jr. na Espanha demonstra isso. Ainda assim, as sociedades não são unidimensionais e a ampla quantidade de jogadores de outras descendências em times europeus demonstra que as brechas antirracistas existem. E são vitoriosas, para o desgosto dos racistas.

Quando morei na França na primeira década do século, joguei futebol em ligas amadoras na periferia de Paris com árabes, negros e alguns brancos. Eles me contavam sobre uma França que não era mais "blanc-bleu-rouge" —branca, azul e vermelha, as cores da bandeira—, mas "blanc-black-beurre", ou branca, negra e manteiga. O fato de usarem "black", e não "noir" —preto em francês— diz muito sobre essa França mais aberta e menos autocentrada.

Para nós, brasileiros, "blanc" e "black" são bem compreensíveis. Mas e "beurre"? Para um francês "puro-sangue", o filho de argelinos Zidane não é branco, mas "amanteigado", ou seja, árabe. Faz-se questão de demarcar que pessoas como ele, mesmo nascidas em Marselha, não são de sangue francês.

Meus amigos falavam de "blanc-black-beurre" sem pudor, identificando-se com essa nova França, embora essa identidade ainda analisasse as raças como blocos sociais. Todos sabiam o quanto a sociedade francesa era racista, mas defendiam a utópica bandeira porque ela apontava para uma sociedade que aceitava a diferença, ainda que segmentada à francesa.

Juca argumentou corretamente que "o traço que distinguia os brasileiros no futebol está cada vez mais distribuído pelo mundo afora. Ótimo! Deixou de ser exclusividade dos inventores do jogo bonito de Didi, o Príncipe Etíope, do indígena Mané Garrincha, dos Ronaldos, Romário, Rivaldo, de Marta, de Pelé".

Há um dado positivo nisso, mas há também uma derrota para o Brasil. A defesa do multiculturalismo racial deixou de ser nossa bandeira, com nossa conivência. No Brasil, tornou-se fora de moda falar de democracia racial. Uma porta para o cancelamento se abre caso alguém use este termo na atualidade.

Palavras como "mulato" foram proscritas do vocabulário nacional por aqueles que buscam distinguir claramente a sociedade entre negros explorados e brancos exploradores. Não há mais lugar para a apologia à mistura, vista como conciliatória e ingênua. O hibridismo racial entre nós é desvalorizado e não serve mais nem como uma utopia de nação.

É claro que o racismo não acabou no Brasil, muito menos na Europa. Levantar a bandeira da miscigenação não significa calar-se sobre nossas cicatrizes. Apesar de nossas chagas, ainda teríamos muito a ensinar sobre miscigenação ao mundo.

Mesmo com todas nossas deficiências, conseguimos uma mistura que não é aquela segmentada da França. A democracia racial nunca foi atingida, mas quem, apesar dos pesares, esteve mais à frente do que nós, imperfeitos brasileiros?

Se quisermos deixar de ser colônias mentais do mundo europeu e americano, é preciso valorizar nossas riquezas sem vergonha ou autocomiseração. Que nos roubem a ideia, mas não a maternidade, afinal fomos nós que gestamos a miscigenação para o mundo.

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