Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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'A Escada' quer a verdade, mas qual o limite entre ficção e documentário?

Questão remonta desde 'É Tudo Verdade', de Orson Welles, e trabalhos manipulados trazem mais dúvidas

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"É Tudo Verdade" era o título do documentário que Orson Welles veio filmar no Brasil em 1942. Num dos episódios trágicos que cerca a produção, a equipe registrava a reencenação da chegada de jangadeiros ao Rio de Janeiro, quando uma má tempestade fez o barco virar.

O pescador líder da viagem real realizada alguns meses antes —e agora retratada no "documentário"— morreu. É sintomática a ironia de um sujeito que morre na reencenação "documental" de sua própria vida.

Isso porque documentários sempre foram associados à ideia de verdade ou realidade. É algo sugerido, inclusive, pelos nomes de muitos festivais dedicados ao gênero, a começar pelo primeiro evento brasileiro do tipo, criado por Amir Labaki em 1996, batizado como o filme fracassado de Welles.

Mas será que é tudo verdade mesmo no cinema documental?

cena de série
Colin Firth e Toni Colette em cena da série 'A Escada' - Divulgação

A última polêmica sobre o tema veio com a série ficcional "A Escada", lançada neste ano, dirigida por Antonio Campos, que encena os fatos que deram origem ao documentário de mesmo título dirigido pelo premiado Jean-Xavier de Lestrade em 2004.

O documentário francês, feito "a quente", acompanhou os passos de Michael Peterson, um americano cuja mulher, Kathleen, é encontrada morta no pé da escada da casa onde moravam nos Estados Unidos. A série americana, por sua vez, retrata a família vítima da tragédia, mas também os personagens envolvidos com a feitura do documentário (como o diretor e a montadora), e foi acusado de não ter sido fiel aos fatos reais da filmagem.

Desrespeito à cronologia real, sugestão do uso de artifícios pelo diretor e imparcialidade da montadora na hora da edição foram algumas das acusações feitas contra Campos.

É interessante que uma ficção seja acusada de manipular a realidade quando essa é justamente a natureza do trabalho ficcional.

O problema talvez pudesse ser evitado com mensagens como a da série "Inventando Anna", de 2021, em que cada episódio começava com o aviso, sempre inserido na tela de forma inventiva, de que "tudo aqui é verdade, exceto por tudo aquilo que foi inventado". Parece um truque baixo, mas não deixa de ser um bom jeito de explicar a coisa.

Outro exemplo interessante é "Atração Fatal", de 1987, o clássico com Michael Douglas e Glenn Close, que abre com uma cartela peculiar que informa que o filme é inspirado em eventos reais, mas completa: "Alguns eventos são combinados ou imaginados para fins dramáticos e interpretativos".

A redação do alerta, contudo, sugere que haveria um limite para a manipulação dos fatos em que se baseia a obra, mantendo-se fiel aos pontos dramatúrgicos essenciais da narrativa. Nessa lógica, a série "A Escada" teria ultrapassado o limite ao modificar a linha do tempo, antecipando o namoro da montadora do documentário com o viúvo protagonista do filme para o momento em que editava o material bruto, o que não ocorreu.

Foi o caso do diretor sueco Hogir Hirori, alvo de acusações sérias de manipulação em seu documentário "Sabaya", de 2021, que venceu o Festival Sundance. Uma reportagem do New York Times revelou, entre outras coisas, que o diretor havia incluído no filme uma reencenação feita por uma atriz como se fosse um registro real, feito ao vivo, da mulher real que protagoniza a história.

Houve alegações de que o documentário é uma forma de arte, e não necessariamente um produto jornalístico, o que parece uma simplificação do que está em jogo.

É claro que artifícios na filmagem (como repetir cenas pedindo mais emoção) ou a manipulação do material bruto na montagem podem gerar reações distintas no espectador, que parte da premissa de que está diante de um material "virgem", não manipulado. Até por isso, termos como "docuficção" e "docudrama" surgiram ao longo dos anos como uma tentativa de diferenciar, dentro dessa imensa zona cinzenta, filmes documentais com diferentes graus de fidelidade à realidade.

Porém, não seria ingênuo acreditar que os registros do filme de Lestrade —ou de qualquer documentário— ainda que não manipulados sob qualquer modalidade, seriam mesmo reais? Parece razoável supor que, a partir do momento que uma câmera é ligada com consciência dos filmados, passa a existir algum grau de representação.

Isso se torna cada vez mais problemático na produção documental contemporânea, que tem se tornado cada vez mais estruturada, se assemelhando muito às fórmulas dramatúrgicas da ficção, com herói, antagonista, conflito, clímax, resolução —sem falar em mistério, surpresa e reviravoltas obtidas à base da manipulação da cronologia dos eventos reais.

Se está certo ou errado, não sei dizer. Tendo a concordar com as palavras de George Orwell: "Numa época de enganação, dizer a verdade é um ato revolucionário". Que bom seria voltar a ver documentários que ousam apresentar a realidade sem dourar a pílula, com tempos mortos e inconsistências inerentes à vida.

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