Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Helen Beltrame-Linné​

O que 'Top Gun' e o Festival de Cannes podem ensinar sobre o futuro do cinema

Além dos filmes, a sétima arte existe atrás das câmeras e nas poltronas que juntas assistem à luz projetada na tela

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Um assunto que tem dominado a indústria audiovisual é a bilheteria de "Top Gun: Maverick". O longa protagonizado por Tom Cruise abriu com força nos Estados Unidos e continuou surpreendendo no lançamento internacional, tendo ultrapassado o marco de US$ 1 bilhão de receita.

Talvez mais surpreendente do que o sucesso nas salas de cinema —tão desacreditadas e debilitadas durante a pandemia— seja o fato de que o blockbuster americano teve sua estreia mundial no Festival de Cannes, tido como o berço do cinema de autor (isto é, não comercial).

cena de filme
Tom Cruise em cena do filme 'Top Gun: Maverick', exibido no Festival de Cannes de 2022 - Divulgaçao

Oficialmente, ele não foi o filme de abertura. Mas tudo o que cercou sua exibição apontava nessa direção, desde o sobrevoo de caças sobre a pequena cidade francesa (o que causou alarme dado o contexto europeu da Guerra da Ucrânia) até a recepção de Cruise, que pintou e bordou na Croisette, levando inclusive uma inesperada Palma de Ouro honorária pelo conjunto da carreira.

Para além do hype, foi interessante acompanhar o discurso do ator americano, que bateu sem cessar na tecla do amor à sétima arte, com declarações como "filmes devem ser vistos no cinema", enaltecendo a experiência coletiva de se assistir a um filme na sala escura. A trajetória do filme afasta qualquer acusação de hipocrisia: "Top Gun: Maverick" ficou pronto em 2020, mas não se rendeu ao streaming e esperou o fim da pandemia para ser exibido na tela grande.

Mas, voltando a Cannes, a abertura oficial do festival tinha acontecido um dia antes, com a exibição do longa francês "Final Cut", dirigido por Michel Hazanavicius.

Hazanavicius, vencedor do Oscar de melhor filme por "O Artista", de 2011, estava temeroso ao abrir o festival com um remake do horror japonês de baixo orçamento "One Cut of the Dead", de 2017. O que o público da imponente sala batizada de Lumière —em referência aos inventores oficiais da sétima arte— acharia de uma comédia "trash" sobre uma equipe de cinema que faz um filme de zumbis?

Mal sabia ele que seu filme cairia como uma luva na temática que se impôs em Cannes: uma ode ao fazer cinematográfico. A jornada de uma equipe de produção que se desdobra para concluir uma filmagem termina numa imagem final emblemática que coroa o sentimento de qualquer trabalhador do cinema, viva ele ou não sob a égide de um governo como o de Bolsonaro.

Coincidentemente ou não, "Final Cut" também retardou sua estreia torcendo por uma oportunidade de ser exibido na tela grande. Convidado para abrir o Festival Sundance no início do ano, Hazanavicius rejeitou a honraria quando o evento assumiu o formato online por causa da pandemia.

Mas como bem apontou Eduardo Valente em seu lúcido artigo "Cannes 2022: O cinema está morto(-vivo)! Vida longa ao cinema?", Cannes teve outra abertura não oficial.

Naquele mesmo horário, a poucos metros da abertura oficial, na segunda sala principal de Cannes, era exibida uma cópia restaurada de "A Mãe e a Prostituta", de 1973, dirigido por Jean Eustache e premiado com Oscar de melhor filme estrangeiro.

Ao final da sessão, diante da sala lotada, Jean-Pierre Léaud, ator protagonista do longa, recebeu com seriedade os aplausos incessantes do público. Fisicamente fragilizado, levantavou-se por alguns instantes em deferência à homenagem, sentando-se em seguida para descansar. O ciclo se repetiu por minutos que pareceram horas, até que o ator não conseguiu mais esconder a emoção e foi possível notar um tremor ao redor dos seus lábios, que resistiam a abrir um sorriso.

Jean-Pierre Léaud recebe Palma de Ouro honorária no Festival de Cannes de 2016 - Valery Hache - 22.mai.16/AFP

Eu estava muito próxima do francês e sua boca tremulante me emocionou profundamente. Porque pude ver naquele rosto tão marcado pelo tempo o mesmo sorriso contido de Antoine Doinel, o personagem icônico de François Truffaut que nos apresentou Léaud aos 14 anos em "Os Incompreendidos", de 1959. No rosto de Léaud, agora aos 78 anos, era possível ver a história do cinema —ou pelo menos daquilo que se convencionou chamar de cinema de autor.

Como bem colocou a crítica de cinema Barbara Kahane, "Léaud foi a primeira pessoa que vimos crescer nas telas de cinema." Isso porque Truffaut carregou o personagem de Doinel por diversos filmes: "Antoine et Colette" (1962), "Beijos Roubados" (1968), "Domicílio Conjugal" (1970) e "Amor em Fuga" (1979), além de tê-lo escalado para clássicos como "A Noite Americana" (1973).

E não foi só Truffaut. O envelhecimento de Léaud pode ser acompanhado em película pelas mãos de mestres do cinema como Jean-Luc Godard, Jean Cocteau, Pier Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci, Jacques Rivette, Agnès Varda, Cathérine Breillat, Jerzy Skolimowski, Aki Kaurismäki, para citar alguns.

Numa entrevista recente, Léaud declarou que precisa da câmera, que, diante dela, ele existe. "Na vida, não há câmera e eu me torno tedioso. A câmera é o meu ponto de referência", completou.

Mas o que há de comum entre Léaud e o astro americano que parece não ter envelhecido nem um quinto dos 36 anos que separam o primeiro do segundo volume de "Top Gun"?

Ao receber a honraria em Cannes, Cruise falou muito sobre uma de suas primeiras experiências no cinema, como um ator coadjuvante de 18 anos no set de "Toque de Recolher", de 1981: "Eu visitava cada departamento da produção para aprender tudo que pudesse —simplesmente para o caso de não me deixarem mais fazer filme algum". Durante a longa conversa, declarou mais de uma vez: "O cinema é meu amor, minha paixão".

Não entrarei na discussão se "Top Gun: Maverick" é ou não um bom filme. Tampouco se merece todos os espectadores que está conseguindo em seu formato de exibição predatória que impossibilita a exibição de outros filmes nas limitadas salas de cinema.

Hazanavicius, de "Final Cut", declarou durante o festival: "Não existem ‘artistas’ de um lado e ‘o resto’ do outro. Estamos todos no mesmo barco. Às vezes você faz bons filmes, em outras você falha e faz um filme ruim". O longa do francês passa uma mensagem clara: a vida dos integrantes daquela equipe fictícia de produção só parece fazer sentido no momento em que se unem para realizar a empreitada de terminar a filmagem.

Duas semanas atrás, numa aparição surpresa no CineEuropa, evento em Barcelona que reuniu exibidores do mundo todo (ou seja, donos de salas de cinema), Cruise declarou: "Eu vejo um futuro brilhante para todos nós".

Milhões de bilheteria à parte, no contexto de debate atual constante sobre o fim do cinema (arte) e dos cinemas (salas de exibição), não deixa de ser um alento ver tantas formas diferentes de ressaltar que a sétima arte é muito mais do que os filmes que a compõem. O cinema existe atrás das câmeras e também nas poltronas que compartilham o momento de assistir à luz projetada na tela a 24 frames por segundo.

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