Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Helen Beltrame-Linné​

Onde está o cinema feito por indígenas e não apenas sobre eles e a Amazônia?

Obras do projeto Vídeo nas Aldeias e do diretor Takuma Kuikuro são exemplares para além dos bons 'A Febre' e 'Los Silencios'

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O jornal dá a notícia do primeiro grupo musical indígena a se apresentar no Rock in Rio. A descrição das aldeias onde vivem os membros da banda —Bororo e Jaguapiru, praticamente engolidas pelas imensas fazendas monocultoras de Mato Grosso do Sul— me fez pensar em "War Pony", longa-metragem exibido no Festival de Cannes deste ano, que retrata as dificuldades vividas pela população sioux dentro da reserva de Pine Ridge.

Não que falte território aos indígenas retratados no filme americano —com seus 8.984 quilômetros quadrados, Pine Ridge é uma das maiores reservas dos Estados Unidos. Contudo, sobram ali problemas que soariam familiares aos nativos brasileiros, como pobreza, desemprego, uso de drogas, alcoolismo, diabetes e gravidez na adolescência, para citar alguns.

Regis Myrupu em cena do filme 'A Febre', de Maya Da-Rin
Regis Myrupu em cena do filme 'A Febre', de Maya Da-Rin - Divulgação

O longa, dirigido por Gina Gammell e Riley Keough (neta de Elvis Presley) —e montado, aliás, pelos brasileiros Affonso Gonçalves e Eduardo Serrano—, foi premiado com a Câmera de Ouro e faz parte de uma linhagem de filmes de temática indígena realizados por brancos.

Um bom exemplo nacional é o excelente "A Febre", de 2019, de Maya Da-Rin, laureado em inúmeros festivais pelo mundo, com vários prêmios no Festival de Brasília e no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, e agora disponível na Netflix.

Ao contar a história de Justino, um indígena desana —etnia que habita o noroeste do Amazonas— que trabalha na área portuária de Manaus, Da-Rin conseguiu transpor a psiquê —ou melhor seria dizer ânima?— indígena para a área urbana da capital.

Sensação semelhante de trafegar pelas crenças indígenas acomete o espectador de "Los Silencios", de 2018, de Beatriz Seigner, exibido na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Localizado na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, o longa aborda os conflitos inerentes à região e sua peculiar cultura fluvial, assim como a herança cosmológica dos povos indígenas latino-americanos.

Outro exemplo é a ficção "Antes o Tempo Não Acabava", de 2017, de Sérgio Andrade e Fábio Baldo, exibida na seção Panorama do Festival de Berlim, que conta a história de um jovem indígena saterê que contraria os líderes da comunidade e vai morar sozinho em Manaus, passando a viver os embates entre duas culturas e a descoberta da sua sexualidade.

Convém mencionar também obras que acabaram se tornando híbridas ao incorporar, de alguma forma, histórias que os grupos indígenas retratados gostariam de contar.

Uma delas é "A Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos", de 2019, de Renée Nader Messora e João Salaviza, que partiu de uma iniciativa documental de observação dos krahôs, no Tocantins, e acabou se tornando uma ficção, construída com uma base forte de realidade, de um jovem da aldeia que foge para a cidade.

"Ex-Pajé", de 2018, de Luiz Bolognesi, também disponível na Netflix, é outro exemplar desse formato misto, que transita entre cenas documentais da comunidade Paiter Suruí, em Rondônia, e reencenações de acontecimentos da vida do personagem que dá título ao filme —que sofre consequências da chegada da religião católica e o conflito com os rituais tradicionais da etnia.

Mas e filmes realizados pelos próprios indígenas, existem?

Sim. Um bom lugar para começar é explorar o site do Vídeo nas Aldeias —projeto precursor na área de produção audiovisual indígena no Brasil, criado por Vincent Carelli—, que tem um belo acervo de filmes separados inclusive por etnia.

Por meio de oficinas que preparam a população de diferentes regiões amazônicas para a realização de seus próprios filmes, a iniciativa foi responsável por viabilizar diversos títulos, dos quais posso recomendar o curta "Espero que Vocês Gostem Destes Filmes", de 2007, de Takuma Kuikuro, e o interessantíssimo "As Hiper Mulheres", de 2012, codirigido por Kuikuro em parceria com Leonardo Sette e Fausto Carlos.

O Vídeo nas Aldeias acabou funcionando como encubadora da primeira geração de cineastas indígenas do país, que agora exibe nomes ativos como Kuaray Poty —também conhecido como Ariel Ortega— e Pará Yxapy —ou Patrícia Ferreira—, homenageados recentemente na mostra indígena realizada pela Mostra de Cinema de Ouro Preto.

É um fenômeno que revela que a produção audiovisual indígena já está caminhando para algo além da mera autoetnografia, isto é, do simples registro dos indígenas por si próprios, em direção ao desenvolvimento de um verdadeiro pensamento audiovisual.

Num momento em que a perseguição indígena parece ter se tornado regra e as populações nativas lutam por suas vidas nos confins do país, pode parecer estranho falar em cinema. Mas creio ser importante ter em mente que este é um ponto relevante a ser levado em conta caso uma administração pública civilizada finalmente assuma as rédeas do Brasil.

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