Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Vencedores do Nobel de Física enfrentaram clima hostil para realizar experimentos

Dedicação à mecânica quântica, vista mais como filosofia, era sinônimo de risco profissional há poucas décadas

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Quão esquisita é a mecânica quântica? Ou melhor, dado que a teoria representa fielmente vários aspectos do nosso mundo, quão esquisita é a realidade? Muita tinta já foi derramada sobre isso, mas a questão não é só teórica e, além de toda a tinta, tem consequências palpáveis no mundo moderno. Para dar só um exemplo, o transistor —peça fundamental do seu computador— se baseia em nosso conhecimento de mecânica quântica.

Na última semana, o Comitê Nobel, que aloca os famosos prêmios, justamente recompensou consequências palpáveis de um dos resultados mais esquisitos de toda a física, o foco desta coluna: as correlações de Bell entre partículas emaranhadas.

Anúncio do Prêmio Nobel de Física de 2022 em Estocolmo, na Suécia - Ren Pengfei - 4.out.22/Xinhua

Os vencedores deste ano, John Clauser, Alain Aspect e Anton Zeilinger dividiram igualmente o Prêmio Nobel de Física de 2022 "por experimentos com fótons emaranhados, estabelecendo a violação das desigualdades de Bell e por serem pioneiros na ciência da informação quântica".

Surpreendentemente, quase todos os anúncios do prêmio focaram um aspecto secundário e, francamente, impreciso do feito: que ele elimina a possibilidade de "variáveis escondidas". O resultado, no entanto, é muito mais interessante e profundo que isso.

A história das tais variáveis, como tantas outras em física, começa com Albert Einstein. O leitor interessado em física já deve ter ouvido a famosa crítica de Einstein à então nascente mecânica quântica: "Deus não joga dados!".

A imagem invocada é a de um velho físico rabugento, reclamando da incipiente ciência por não respeitar a ideia de que o futuro é determinado inteiramente pelo passado —o que, em filosofia, é chamado de determinismo. No caso, a alternativa ao determinismo seria como se Deus, ao ponderar o que faria acontecer amanhã, "jogasse dados" em vez de só olhar para o que está acontecendo hoje.

A verdade, porém, é que Einstein foi um dos pioneiros da física quântica e a compreendia melhor que quase todos os físicos da época. O que mais incomodava Einstein, desde o final dos anos 1920, era como a teoria desrespeitava, não exatamente o determinismo, mas outro pilar da física moderna: a localidade.

Para entender a ideia, imagine que os irmãos João e Maria estejam disputando um vaso e o quebrem ao meio. Como eles têm pais bravos, antes até mesmo de examinarem as respectivas metades do vaso, os irmãos as colocam em uma caixa lacrada e as levam para lados opostos da galáxia. Por mais longe que estiverem, as fissuras do pedaço levado por João se encaixam perfeitamente nas fissuras do pedaço levado por Maria: abra uma caixa e olhe para uma metade e você consegue descobrir, naquele instante, como está a outra, mesmo a anos-luz de distância.

Até aí sem mistério: ao olharmos para a metade do vaso de João, só estamos descobrindo uma propriedade da metade de Maria que já havia sido determinada e fixa ao quebrarmos o vaso, quando as duas metades estavam juntas.

Aí entra o emaranhamento quântico. Imagine que João e Maria quebram outro vaso, só que agora um "vaso quântico". Antes de qualquer observação, as fissuras de cada metade estarão em uma superposição quântica de todas as geografias possíveis. Assim como no caso anterior, ao descobrirmos a geografia da fissura de um lado, também saberemos qual era a do outro.

O problema é que, segundo a mecânica quântica —e ao contrário do primeiro vaso que encontramos acima—, as fissuras não estavam fixas e determinadas o tempo todo: é o próprio ato de observação que determina, ou "colapsa", a superposição naquele instante. Ao olharmos para as fissuras da metade do vaso de Maria, determinamos, instantaneamente, as fissuras da metade do João!

Esse efeito, de determinar algo instantaneamente, é o que quebra a localidade e fica em tensão com outra teoria de Einstein: a relatividade especial. Era essa tensão que incomodava Einstein, que a denominava "spooky action at a distance", ou ação assombrosa a distância.

(Note que mesmo esse efeito não daria a João uma forma de comunicar nada a Maria, pois ele não tem como controlar quais fissuras do vaso serão descobertas por ela: as fissuras são totalmente aleatórias.)

Ao perceber que esse insulto à localidade era uma consequência da mecânica quântica, Einstein propôs que a teoria, na verdade, não continha superposições: os vasos se quebravam de forma única, mas essa forma era guiada por "variáveis ocultas", que iam além da descrição usual do estado quântico, mas que não conseguíamos controlar. Isto é, segundo ele, era possível dar uma descrição mais completa e determinista da situação física, mas não tínhamos como saber qual descrição era a real.

Deus, nesse caso, não jogaria dados. Seria só a nossa ignorância sobre as reais configurações dessas variáveis que surtiria o efeito da aleatoriedade, que normalmente era explicada pelo colapso da superposição quântica.

Trinta anos mais tarde e os questionamentos de Einstein ainda não haviam sido levados a sério. Pois o clima acadêmico até então não permitia muitas discussões sobre o significado da mecânica quântica: a mensagem velada era "cale a boca e calcule", não tente entender. Discussões sobre as fundações da teoria eram sistematicamente ignoradas, se não reprimidas, pelo ambiente acadêmico.

Era nesse clima que o irlandês John Bell, que tinha uma posição como professor em outra área de física, tentava ressuscitar interesse nas fundações da quântica.

Bell sabia que, se tentássemos fazer as mesmas medições em cada metade do par emaranhado, não conseguiríamos distinguir as variáveis escondidas de Einstein de uma superposição quântica. Aqui, a analogia com o vaso fica mais escorregadia. Na verdade, cada metade do vaso é uma partícula com direcionalidade: como uma bússola, essas partículas apontam para alguma direção.

Segundo Bell, toda vez que medíssemos se as duas partículas —ou as duas metades do vaso— apontavam para as mesmas direções, digamos, Norte e Sul, sua correlação seria perfeita: como o encaixe perfeito e complementar das fissuras, uma apontaria para o Norte só caso a outra apontasse para o Sul.

Essa correlação, como havia notado Einstein, era a mesma, quer a direção das partículas estivesse em superposição e colapsasse naquele instante, quer estivesse determinada desde o início. Mas Bell percebeu que, se usássemos ângulos diferentes em cada braço do experimento —por exemplo, Nordeste e Sul—, teríamos correlações diferentes para os dois casos!

Finalmente, tínhamos uma distinção experimentalmente viável para averiguar se o estado das metades dos vasos era determinado pelo colapso instantâneo da superposição quântica ou se era secretamente determinado localmente desde sua separação.

O chamado teorema de Bell, que resultou daquelas indagações, é mais geral que as variáveis escondidas de Einstein: ele aponta que, dadas certas suposições, é impossível obter os mesmos resultados devido à superposição quântica por meio de uma teoria que seja totalmente local, sem nenhuma tensão com a relatividade.

Entre as suposições mais importantes do teorema, na nossa analogia, está que a escolha do ângulo das medições da metade de João, de um lado da galáxia, é independente da escolha do ângulo das medições da outra metade, do outro lado da galáxia.

Recentemente, em 2015, um dos vencedores do prêmio, o austríaco Anton Zeilinger, junto com colaboradores, fechou uma "brecha" dessa suposição. Para garantir que as escolhas de medição de cada lado do experimento fossem realmente independentes, Zeilinger e colaboradores deixaram que as "escolhas" fossem feitas aleatoriamente, por raios de luz vindos de cantos opostos do universo —cantos tão distantes um do outro que nunca tiveram a oportunidade de "se comunicar".

Com esse experimento, não há como os dois lados das medições estarem mancomunados e, ao lado das fissuras do vaso, correlacionados desde o início do experimento, em uma conspiração que emule o resultado usual da quântica.

Dos três vencedores do prêmio, Zeilinger é o que teve as contribuições mais recentes. Dado o clima hostil ao estudo das fundações da mecânica quântica prevalente desde o pós-guerra —área vista mais como filosofia que como física—, quase uma década se passou do trabalho pioneiro de Bell até o primeiro teste de seu teorema, por John Clauser, em 1972.

O físico austríaco Anton Zeilinger em entrevista coletiva na Universidade de Viena, após receber o Prêmio Nobel de Física de 2022 - Joe Klamar - 4.out.22/AFP

Sabendo dos riscos, Bell recomendava o estudo das fundações da quântica só para professores com posições estáveis e ativamente coibia jovens pesquisadores de se dedicarem à área. Foi com muito esforço e muito risco profissional que Clauser —e depois Alain Aspect, em 1982— fizeram aqueles primeiros testes experimentais.

Todos os resultados até hoje confirmam a versão padrão da mecânica quântica, que prevê superposições e colapso instantâneo do estado quântico. Uma interpretação possível é que o estado quântico do Universo é um só: não há uma parte aqui, independente de uma parte ali. A implicação desse holismo quântico é que, quando o estado do Universo colapsa em algum canto, ele colapsa em todos os cantos, simultaneamente, desrespeitando o limite da velocidade da luz.

Como eu disse, a realidade quântica é esquisita, por ser não local. O grande Einstein ficaria, pelo menos desta vez, decepcionado.

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