Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Itamar Vieira Junior

Minha cachorra paraplégica me fez olhar para animais como seres plenos de direitos

Não dá para imaginar o afeto que sinto ao vê-la sonhando e movimentando as patas, como se estivesse correndo

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Antes de dormir, lembrei que precisava escrever este texto. Ao longo do mês, vou acumulando ideias que considero interessantes, sempre pensando em mim, como um exercício de reflexão, e no prazer que o texto possa vir a provocar no leitor.

Desta vez, imaginei que poderia escrever sobre a contribuição da literatura para a noção de direitos humanos ou a política em nosso país, mas aí me dei conta de que outros colunistas fazem o mesmo de uma maneira melhor do que eu faria.

Poderia, então, escrever sobre Cuba e dizer que, como alguém que cultiva a possibilidade de liberdade e que mantém o imenso desejo de ver a nossa população se levantar contra a pulsão de morte que aqui se instalou, não posso concordar com a opressão à livre manifestação e os sofismas para justificar o regime, lá e aqui.

Antes que Anoiteça”, de Reinaldo Arenas, é um manifesto sobre a violência que é a censura e a perseguição a dissidentes em Cuba. E, sim, acho o bloqueio econômico dos EUA igualmente criminoso e contraditório, já que o país apoiou e fomentou inúmeras ditaduras mundo afora durante os mais de 60 anos de embargo econômico à ilha.

Mas aí olhei para o lado e vi a cama onde Frida dorme profundamente. Ela tem sido minha companheira nos últimos anos e, naquele instante, movimentava as patas como se estivesse correndo na areia da praia ou no gramado da praça.

Seria algo trivial, afinal, os cães sonham, é o que nos dizem os pesquisadores. Exames de encefalograma realizados durante o sono mostram que os animais são capazes de emitir padrões de ondas cerebrais muito semelhantes aos nossos.

Só que Frida é paraplégica, não anda com as quatro patas desde os primeiros meses de vida. Ela foi encontrada por meu irmão, atropelada e abandonada na rua. Sem saber o que fazer, ele me pediu ajuda para levá-la ao veterinário. Durante o período em que ficou internada, fiz visitas regulares para acompanhar sua evolução e mantive a esperança de que se recuperasse para seguir para adoção, já que a minha vida seguia veloz e eu não tinha como acolhê-la da maneira adequada.

A cada visita, levava comigo a esperança de vê-la recuperada, mas aos poucos fui percebendo a gravidade de seu quadro, o que me deixou mais aflito sobre o que fazer. Na terceira semana, descobri uma conta acumulada que prometia me levar à ruína.

Eu sempre observava Frida a distância, com receio de que estabelecêssemos laços. Ela também me olhava a distância, mas, quando percebia que eu me afastava para ir embora, emitia um gemido típico dos cães que querem atenção. Certamente já me reconhecia.

Foi assim que a levei para casa para descobrir, horas depois, que aquele primeiro dia seria terrível. Eu não sabia usar a fralda de forma adequada para sua incontinência, e as pessoas em casa olhavam com desalento para a sujeira. No mesmo dia, voltei à clínica. Pedi que cuidassem dela por mais um tempo, enquanto eu procurava um abrigo que pudesse acolhê-la.

No dia seguinte, uma veterinária me passou o contato de alguém que tinha um sítio, que cuidava de animais e poderia ajudar. Quando eu liguei para conversar e me informar exatamente do que se tratava, a proprietária do sítio me disse que eu precisaria pagar um valor 30% superior ao salário mínimo da época. Impossível, eu já vivia no limite. Voltei à clínica, e o veterinário me disse que, se não me adaptasse, poderia retornar para fazer a eutanásia.

Eu sabia que não retornaria, não teria coragem. Era um cão como qualquer outro: brincava, comia, pedia atenção. A única diferença era que se movimentava, e continua a se movimentar, como uma foca. Nos primeiros dias, eu saía para caminhar na rua com ela nos braços. Depois, descobri carrinhos adaptáveis para cães deficientes e fomos superando aos poucos cada barreira.

À medida que ela crescia —e ia ficando tão pesada quanto uma foca—, fui deixando de lado alguns projetos que já não se ajustavam à nova vida: o intercâmbio do doutorado, as viagens e a residência artística.

Ainda hoje, quase dez anos depois, preciso recusar muitos convites porque quando ligo para hotéis e profissionais especializados que acolhem animais temporariamente e informo sobre sua deficiência, quase todos dizem que preferem não recebe-la neste estado por tais e tais razões.

Aos poucos, essa dependência passou a ser relativa, porque me sinto igualmente ansioso por sua companhia. Ela dorme aos meus pés enquanto escrevo e foi um esteio durante este longo isolamento gerado pela pandemia. Ajudou-me a ter uma rotina de leitura e escrita e também de compaixão e reflexão sobre os sentimentos que compartilhamos e fazem de nós, ainda que animais de diferentes espécies, seres com muito em comum.

Foi assim que se instaurou em mim um sentimento de equidade de que certa vez vi Ailton Krenak falar, ou seja, solidariedade e compaixão que estão além do humano. Foi assim que pude olhar para os seres vivos ameaçados por nossa ação predatória como seres que também podem ser plenos de direitos.

Vocês não imaginam o afeto que sinto ao vê-la caminhando, livre, durante o sonho.

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