João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Três livros para lavar a alma

Obras que ajudam a olhar para o futuro com o otimismo que falta no presente

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Escrevi semanas atrás, citando David Frum, que o conservador do século 21 é aquele que conserva a herança liberal que triunfou no trágico século 20. Mas o que é essa herança? Que valores ela defende? E, já agora, que autores devem ser lidos e relidos para lembrá-la?

É Natal. Se o leitor ainda não comprou todos os presentes, existem três livros já publicados no Brasil que merecem atenção particular.

O primeiro é de Mario Vargas Llosa e dá pelo nome de “O Chamado da Tribo” (Objetiva, 265 págs). É uma autobiografia intelectual do Nobel da literatura, que marchou na juventude pelas bandeiras do marxismo e do existencialismo sartriano (uma contradição nos termos, como Raymond Aron não se cansou de avisar) e que chegou ao liberalismo na maturidade.

Ilustração seis livros em linhas vermelhas e pretas
Angelo Abu/Folhapress

O resultado dessa evolução está presente na obra, que procura fazer pelo liberalismo o mesmo que Edmund Wilson conseguiu com o clássico “To the Finland Station” para a ideia socialista: uma reconstituição histórica e teórica.

A viagem começa com Adam Smith, prossegue com Ortega y Gasset, inclui um quarteto fundamental (Hayek, Popper, Isaiah Berlin, Raymond Aron) e termina com Jean-François Revel. São autores que
 recusam o “chamado da tribo”, ou seja, o retorno à sociedade fechada das mentalidades primitivas.

Para esses magníficos, a liberdade —política, econômica, moral, interior— deve ter sempre primazia sobre qualquer tentação revolucionária ou reacionária.

O segundo livro, curiosamente, partilha vários traços com Vargas Llosa. É da autoria do meu ilustre colega João Carlos Espada e tem como título “Liberdade como Tradição” (Távola, 364 págs.).

É um livro que repete o quarteto fundamental (Hayek, Popper, Berlin, Aron) para responder à mais importante questão sobre a cultura política de língua inglesa: como explicar que a Inglaterra tenha passado por todas as revoluções (industrial, econômica, social etc.) sem nunca fazer a Revolução?

É um mistério que intrigou vários autores, como Elie Halevy, e que conhece no livro uma tentativa de resposta: na Inglaterra, ao contrário do que se passou no continente europeu, havia uma “tradição de liberdade” que sempre se opôs ao poder ilimitado.

As ideias de John Locke tiveram na França o mesmo efeito que o álcool em estômago vazio, como dizia Anthony Quinton. Mas o mesmo não sucedeu na Inglaterra porque o estômago não estava vazio: desde a Magna Carta de 1215 que a concepção de liberdade era entendida como patrimônio legalmente protegido contra as tentações autoritárias do rei ou das multidões.

A tradição era a liberdade, não o abuso; o que implicou, por exemplo, que o primeiro grande conservador moderno (Edmund Burke) tenha sempre procurado conservar esse patrimônio, quer na Revolução Americana, quer na Revolução Francesa, ao contrário de outros conservadores da Europa continental.

Pois bem: o terceiro livro, da autoria de Ivone Moreira, tem o conservador irlandês como objeto de reflexão. O título é “A Filosofia Política de Edmund Burke” (É Realizações, 568 págs) e não conheço outra obra publicada no Brasil que ofereça um estudo comparável sobre o pensamento do velho “whig”.

Com inteligência e erudição, Ivone Moreira enfrenta outro mistério da cultura política de língua inglesa: como explicar que o Burke que apoiou a independência americana tenha sido o mesmo que se opôs à Revolução Francesa? Haverá aqui uma contradição insanável, como acusaram os seus críticos?

Nem por isso, responde a autora, para quem a conduta e o pensamento de Burke revela uma consistência assinalável. Burke, herdeiro da tradição naturalista ocidental, procurou sempre aplicar os princípios da lei natural às circunstâncias concretas da história.

É essa âncora moral que resgata Burke do mero relativismo político ou epistemológico.

Moral da história?

É voz corrente a ideia de que os movimentos populistas e nacionalistas que corroem as nossas democracias são uma ameaça para a esquerda tradicional.

Isso é parte da verdade. Não é toda a verdade. A ameaça não é apenas para a esquerda. É também para a direita democrática e liberal, aberta ao pluralismo (como em Vargas Llosa), ciosa das liberdades fundamentais contra os abusos do poder (como em Espada) e relutante em trocar a dignidade da consciência moral pelo reles cálculo do poder pelo poder (como em Moreira).

Ler esses três livros ajuda a lavar a alma das sujidades políticas do nosso tempo. E a olhar para o futuro com o otimismo que falta no presente.

Bom Natal.

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