João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

Rebeliões populistas de hoje têm espírito de revoltas camponesas do século 16

Encontramos as mesmas figuras alucinadas que, movidas por um desejo de pureza irreal, se lançam contra elites corrompidas

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A classe trabalhadora está a morrer nos Estados Unidos. Corrijo. Não está a morrer, está a matar-se. “Mortes de desespero”, eis a expressão que estudiosos como Anne Case e Angus Deaton pesquisam há vários anos.

Os instrumentos do fim são conhecidos. Armas. Álcool. Drogas. Vale tudo para acabar com vidas de naufrágio.

Ilustração em vermelho e preto mostra imagem do rei, de carta de baralho, caído. obre ele, um corvo. Ele olha o bicho.
Angelo Abu/Folhapress

Aliás, não apenas a classe trabalhadora. Informa o New York Times, a partir das pesquisas do casal Case e Deaton, que o cenário é idêntico para a classe média branca sem formação universitária. O desespero mata com igual intensidade. E de onde vem esse desespero?

Sim, a desigualdade crescente. Sim, a falta de serviços públicos de saúde. Sim, o “outsourcing” industrial que a globalização trouxe no seu rastro.

Se a depressão, como dizia Freud, é a incapacidade de projetarmos um futuro para nós, há uma parte da América que está coberta por essa nuvem negra. A violência contra os próprios é uma saída.

Outra é acreditar em políticos redentores que sejam capazes de tornar a América grande outra vez. Quem não entende o fenômeno populista como um fenômeno intrinsecamente revolucionário, lamento, passou ao lado dessa história.

O escritor francês Éric Vuillard não passou. Já falei de Vuillard a propósito do seu “A Ordem do Dia”, uma novela breve sobre a ascensão de Hitler ao poder (prêmio Goncourt em 2017).

Vuillard é essa estranha combinação: ensaísta, historiador, romancista. Certo é que essa literatura “mestiça” transporta uma força meditativa que se ajusta aos problemas do nosso tempo.

O seu mais recente livro, “La Guerre des Pauvres” (a guerra dos pobres), confirma o que digo.

Superficialmente, o tema que ocupa Vuillard perde-se na memória do século 16. E a figura central —Thomas Müntzer (1489 – 1525)— tem interesse para teólogos ou especialistas sobre a Reforma Protestante.

Mas Müntzer, aquele rapaz que viu o pai ser enforcado pelas autoridades feudais germânicas (curioso: Lênin, que admirava Müntzer, também ficou indelevelmente marcado quando jovem ao testemunhar a execução do irmão pelas autoridades do czar), chamou a si uma tarefa radical: convocar os miseráveis para um ajuste de contas com os príncipes.

Nas palavras de Éric Vuillard, Müntzer sentia “uma sede de pureza”, uma intolerância face à “imundície” do poder, uma exasperação face ao “gentil povo cristão” que, pela sua passividade, se limitava a repetir os versículos em latim sem compreender o que dizia.

A Bíblia deveria ser vertida na língua vulgar; o conhecimento deveria ser extensível aos maltrapilhos; e a eles deveria ser confiada a espada para punir os enganadores de Cristo.

A violência foi a etapa seguinte. Exércitos de gente pobre destroem e saqueiam as cidades e os seus palácios. Cabeças rolam, cabeças são expostas em piques.

Mas tudo termina em Frankenhausen, na batalha do mesmo nome, quando as forças militares de Philip de Hesse e de George da Saxônia massacram os camponeses.

Müntzeria seria capturado e teria o mesmo destino do pai.

Na pequena e preciosa obra de Vuillard, Müntzer não é apenas apresentado como um revolucionário protestante, interessado em salvar os espíritos pela força da fé e da espada.

Ele ocupa um lugar primeiro na longa lista de revolucionários políticos que tiveram na Revolução Francesa o seu apogeu.

Mas não só. Vuillard vê nas guerras dos camponeses do século 16 o espírito que preside a muitas das rebeliões populistas do nosso presente.

Encontramos as mesmas figuras alucinadas que, movidas por um desejo de pureza irreal, se lançam contra as “elites” dissolutas ou corrompidas.

Encontramos o mesmo ódio ao “velho discurso” das elites, com a diferença de que, agora, não é o conhecimento bíblico que deve ser democratizado; é todo o tipo de conhecimento, vertido no caos moral e epistemológico da internet.

Encontramos o mesmo apelo ao “verdadeiro povo”, por oposição a um povo falso ou vendido, que não merece sobreviver no novo reino dos justos.

E encontraremos a mesma destruição desencantada, os mesmos exércitos de seguidores atraiçoados e os mesmos salvadores reduzidos à condição paradoxal de homens “frágeis e violentos”, “inconstantes e severos”, “enérgicos e repletos de angústia”.

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