João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Fukuyama mostra que esquerda e direita têm instintos de censura

Radicalizados, ambos os lados ignoram que o liberalismo não se confunde com os abusos cometidos em seu nome

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Todas as profissões têm as suas piadas privadas. Entre os cientistas políticos, "Francis Fukuyama" e "o fim da história" é uma delas. Sempre que alguém junta essas duas frases, há sempre risos inteligentes e a frase fatal: "A história terminou com a queda do Muro de Berlim e depois veio o 11 de Setembro." As gargalhadas aumentam de volume.

Sou insuspeito: várias vezes participei no deboche. Mas, aqui entre nós, a paródia assenta num equívoco: Fukuyama não disse que a história terminara com o fim da Guerra Fria. Ele apenas declarou que o modelo democrático-liberal era superior aos restantes. E não é?

Não discuto abstrações. Discuto migrações. As democracias liberais têm os seus competidores —em Cuba, Rússia, Turquia, China. Mas não vejo muita gente querendo emigrar para lá.

Uma multidão de especuladores liberais do século XIX se aglomera inquieta ao longo da imagem, com suas cartolas
Ilustração publicada em 13 de junho - Angelo Abu

Pelo contrário: o desejo é o inverso. Fugir de lá e vir para cá. Será que uma parte da humanidade está seriamente equivocada?

Escutando os nossos extremistas de direita e de esquerda, não existe nada de valioso por estas bandas. O liberalismo é uma fraude: gera desigualdade, relativismo moral e apenas mascara relações de submissão e poder, em que as elites dominam o povo (versão da direita) ou em que o povo reacionário é um freio ao progresso (versão da esquerda). Hora de abandonar o barco?

Um pouco de calma, aconselha o injustiçado Francis Fukuyama no seu livro mais recente: "Liberalism and its Discontents". É um dos melhores livros de Fukuyama.

Comecemos pelo básico: liberalismo é uma doutrina política que emergiu na segunda metade do século 17 com a ambição meritória de limitar o poder dos governos e proteger os direitos dos indivíduos.

Mas, antes de ser uma doutrina, é também uma descoberta: os indivíduos não são definidos pelo grupo a que pertencem, mas pela autonomia de que são capazes para fazerem as suas escolhas e viverem suas vidas.

É um pensamento nobre, nem sempre respeitado ao longo da história, mas que foi sendo realizado, a duras penas, na defesa da tolerância perante a diversidade, na proteção da economia de mercado e na luta por iguais direitos para todos.

Acontece que, no último meio século, direita e esquerda radicalizaram a própria noção de autonomia —e, com isso, desfiguraram as virtudes do liberalismo.

Para Fukuyama, a direita neoliberal pôs o mercado acima de qualquer outro valor social, ao mesmo tempo que demonizou o papel do Estado.

Esse fanatismo pagou-se com desigualdade, desemprego maciço nas indústrias tradicionais do Ocidente —e, claro, crises financeiras destrutivas que abriram as portas aos populismos do momento.

A esquerda identitária também se entregou a uma nova interpretação das "políticas de identidade". Originalmente, a ideia era completar o liberalismo pela integração de grupos marginalizados no mesmo contrato social. A luta pelos direitos civis nos Estados Unidos é um dos melhores exemplos.

Mas a radicalização do conceito de autonomia por uma parte da esquerda teve dois efeitos só aparentemente contraditórios, escreve o autor: por um lado, levou os indivíduos a procurarem o seu ser autêntico, livre das amarras sociais; por outro, levou esses mesmos indivíduos a concluírem que as amarras eram mais fortes do que a essência prometida e nunca encontrada.

A dimensão universalista do liberalismo, em que todos somos iguais em direitos e deveres, deu lugar a uma nova tribalização da sociedade, em que os grupos, e não mais os indivíduos, rejeitam os próprios pressupostos do modelo liberal.

É assim que estamos, diz Fukuyama. A direita e a esquerda rejeitam o liberalismo pelas suas alegadas patologias econômicas e sociais sem entenderem que a maior patologia de todas é a forma drástica como o liberalismo foi sendo aplicado.

Essa confusão conceitual gera seus monstros: entre a direita, um nacionalismo que parece importado do século 19, como se fosse possível regredir no tempo e restaurar uma uniformidade moral, étnica ou religiosa.

Entre a esquerda, a mesma atitude reacionária que procura aprisionar os indivíduos em identidades estáticas, essencialistas e pré-modernas.

Em ambos os casos, os mesmos instintos censórios e paranoicos. Quem nos salva desse manicômio? Ler Fukuyama é um princípio de salvação: no diagnóstico do problema está já contido o esboço de uma terapia. Que o mesmo é dizer: defender as democracias liberais significa não jogar fora o bebê com a água do banho. O liberalismo não se confunde com os abusos que foram cometidos em seu nome.

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